segunda-feira, 19 de agosto de 2019

O aborto sob um viés do Direito não instrumentalista

A decisão do Supremo Tribunal Federal de que mulheres grávidas de fetos anencéfalos podem ter o direito ao aborto foi revolucionária no Brasil. Muitas pessoas foram ouvidas em dois dias de debate e o STF decidiu, por 8 votos a 2, que seria possível a interrupção terapêutica da gravidez de fetos sem cérebro. Assim, foram ponderados diversos fatores acerca do tema: a criminalização do aborto pelo Código Penal; a promoção de inovações no ordenamento normativo pelo Judiciário; a saúde física e mental da gestante; o caráter médico, humanitário e neurológico do feto anencéfalo, entre outros aspectos.
Levando em consideração o artigo 124 do Código Penal, é necessário ressaltar que tal regulamento foi criado no ano de 1940 e não abrange as mudanças sociais posteriores a essa data. A ilusão de que o Direito não é movido por forças externas, e está sempre travestido de neutralidade e universalidade, dificulta o entendimento da norma como construção histórica. É fundamental que a lei seja expandida de acordo com as transformações sociais e sua abstração seja discutida através de uma análise da história.
Além disso, o poder simbólico, ou seja, a dominação sem coação de força física, vem oprimindo as mulheres ao longo dos milênios sem interrupção. A violência, também simbólica, sobre os seus corpos demonstra a ausência de controle e autonomia nas decisões pessoais das mesmas, demonstrando que a sua saúde psicológica e física são menos importantes do que um feto que tem expectativa de vida extrauterina mínima ou inexistente. 
Por fim, cabe à ciência rigorosa do direito evitar o instrumentalismo, ou seja, o direito à serviço da classe dominante. Dessa forma, é através de tal ferramenta que se garante o dever do Estado de proporcionar a igualdade de gênero e consolidar a mulher como a única capaz de decidir sobre o seu corpo e determinar a própria maternidade. Somente com a função contra-majoritária do ordenamento jurídico seria possível um maior acolhimento das mulheres na sociedade como proprietárias de sua constituição física e de seus direitos.

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