domingo, 18 de agosto de 2019

A violência simbólica e o espaço do possível de atuação do STF na ADPF/54

O aborto tem sido um tema muito discutido no Brasil nos últimos anos. De acordo com os artigos 124, 125 e 126 do Código Penal, trata-se de uma prática criminosa, sendo realizada por si mesma ou por terceiros, podendo chegar à pena de reclusão de um a dez anos, salvo se houver risco de vida da gestante ou concepção do feto por meio de estupro, conforme previsto no artigo 128 do CP.
Tendo isso em vista, em 2012, o Supremo Tribunal Federal votou quanto ao caso de aborto em anencéfalos, que possuem morte certa conforme opiniões de vários médicos especialistas nessa área. A maioria dos ministros foi a favor de que houvesse um excludente de ilicitude para casos do aborto destes, tendo em vista o raciocínio de que não havendo concretização da vida, não haverá morte. O relator do processo, o ministro Marco Aurélio, apresentou diversos argumentos para votar favoravelmente à concretização de tal excludente, entre eles o dado de que o Brasil é um dos países que mais sofre com a incidência de gravidez de anencéfalos, onde até 2005 houve 3 mil autorizações para se interromper a gestação do feto, havendo 1 anencéfalo a cada 1000 nascimentos. Dessa forma, obrigar uma mulher a manter um feto natimorto em seu corpo é uma afronta contra à dignidade humana, princípio contido no inciso III, artigo 1° da Constituição Federal. Ora, há a hipótese de manter a gravidez e, caso o feto morra, doarem-se seus órgãos. Não, neste caso estaríamos contrariando um dos pilares da filosofia Kantiana: o de nunca usar o ser humano como um meio para determinado fim. Dessa forma, legitimar-se-iam ainda mais abusos contra as mulheres, já vítimas de incontáveis injúrias ao longo da história, aumentando ainda mais o conceito de "Violência Simbólica", de Pierre Bourdieu, o qual é uma afronta contra o prestígio, a honra e o reconhecimento; ainda sim, de acordo com o Doutor Salmo Raskin, da sociedade brasileira de genética clínica, a impossibilidade de se doarem tais órgãos é certa e, portanto, tal gestação só traria dor às mulheres, tal como é exemplificado no documentário "Uma história severina", que narra a trajetória de uma mãe nordestina e pobre que teve um filho anencéfalo natimorto que, devido à morosidade em conseguir uma ação judicial para realizar a interrupção gestacional, deu a luz a uma menina morta. Além disso, os horrores psicológicos que aconteceram cm a mãe são narrados com grande emoção, com destaque para o momento em que a mãe conta como foi comprar a primeira e única roupara de sua filha para enterrá-la, denotando o quão mal fez para ela toda essa situação. No entanto, contrariando o voto do relator e da maioria dos ministros, César Peluzo e Ricardo Lewandowski votaram contra tal excludente, tendo o último citado argumentado de maneira interessante ao afirmar que "não é dado aos integrantes do judiciário promover alterações no ordenamento normativo como se fossem parlamentares", ou seja, seria como se estivessem ultrapassando o limite entre autonomia de cada um dos três poderes. Dessa forma, tal argumento vai ao encontro do conceito de "campo", de Bourdieu, o qual corresponde a um espaço específico no qual são determinado a posição social do agente e quais são os limites de sua atuação, sendo este o chamado "espaço do possível"- tal qual os limites do STF para com o poder legislativo. Além disso, tal decisão tomada no julgamento, embora benéfica à sociedade, abriria margem para que o STF conseguisse cada vez mais poder para modificar algumas normas, descumprindo seu papel de "guardião da CF"e talvez até entrando nas competências do poder legislativo, votando leis que não agradem nem beneficiem uma grande parcela da sociedade. Ora, realmente não cabe ao judiciário criar as leis, no entanto, tal decisão beneficia muitas mulheres várias mulheres que sofrem e já sofreram com a gravidez de anencéfalos, assim, exercendo o capital jurídico buscando-se o melhor para a sociedade, ainda sim talvez extrapolando o espaço do possível para realizar tal ação. Além disso, há projetos no Congresso Nacional que estão em tramitação para normatizar assuntos referentes ao aborto.
Dessa forma, embora de acordo com os ministros que votaram contra tal excludente, concluí-se que, devemos nos ater à dignidade da pessoa humana (no caso, a das mulheres) contrariando o que foi mostrado no documentário citado, em consonância com a teoria doutrinária  da personalidade condicional, na qual o nascituro possui direitos suspensos até seu nascimento com vida. Sabendo que o anencéfalo não tem possibilidade de nascer com vida, por meio do princípio de proporcionalidade, deve-se ponderar pelo direito à saúde da mulher, coerentemente proposta pelo ministro relator do caso. Finalmente, é válido ressaltar que a legalização do aborto não foi posta em mérito, sendo a única pauta da discussão a de tirar a ilicitude da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, no entanto, já é um grande passo para se promoverem mais debates sobre a questão de saúde pública e se diminuir os tipos de violência contra a mulher, seja a fática ou a simbólica.


Theodoro Antonio de Arruda Mazzotti Busulin, 1º ano Matutino

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