domingo, 17 de junho de 2018

O poder Hegemônico

     A sociedade brasileira, por sua formação, sempre esteve passível às mudanças políticas e jurídicas que ocorreram através da história. Seja na proclamação da independência ou na da república, a participação popular foi inexistente e tais acontecimentos ocorreram com o protagonismo das classes dominantes que, por estarem no poder, sempre tiveram forte pensamento conservador e até mesmo eurocêntrico em sua política. No campo jurídico, a estagnação intelectual é nítida quando se analisa a história do direito: apesar da proclamação da república ter ocorrido em 1889, o direito civil, isto é, o conjunto de leis que regem a vida e morte e as relações de todas as pessoas, continuou sendo legislado pelas Ordenações Filipinas do século XVII até a criação do primeiro código civil brasileiro, em 1916.
     Na contemporaneidade, o direito dos marginalizados ainda continua atrasado e à mercê do conservadorismo político, sendo notória a situação indígena. No Brasil, as medidas em relação aos indígenas transitam entre dois polos: um protecionista e outro integralista, fortemente controlados pelas elites, o que Boaventura de Souza Santos vai nomear de "Hegemonia", isto é, o direito e os interesses das classes dominantes e da globalização capitalista que produz a cultura e a usa como ferramenta de poder. No regime protecionista, temos o isolamento geográfico do indígena em reservas, com relativa proteção às riquezas naturais que se encontram na circunscrição territorial demarcada. Já no integralista temos a "tentativa" de inserir o indivíduo proveniente de comunidades isoladas na sociedade brasileira, absorvendo a cultura da mesma. Embora com políticas completamente diferentes, ambas tem o fator em comum do controle do estado sobre as comunidades indígenas, que estão, portanto, dependendo das correntes políticas e da vontade da Hegemonia. Por exemplo, o protecionismo ganhou força em 1910 com a criação do SPI — Serviço de Proteção ao Índio — e seus direitos foram garantidos nas constituições federais de 1934,1937,1946 e 1988, adequando-se à forte "Contra-hegemonia" que defendia os direitos indígenas, os direitos humanos, a biodiversidade, a democracia participativa, entre outros princípios que desafiavam a Hegemonia vigente com o viés único do mercado. Porém, com a mudança no espectro político para uma direita radical na ditadura militar, a constituição federal de 1969 possibilitava a desapropriação das terras demarcadas para a exploração das riquezas minerais que ali pudessem existir. Além disso, ainda na ditadura, em 1978 foi editada medida prevendo que o indígena fosse emancipado compulsoriamente segundo o querer da FUNAI.
       O pensamento integralista que ganhou força na ditadura militar brasileira é fruto do multiculturalismo tradicional, que segundo Boaventura, acompanha a Hegemonia e não reconhece as diferenças sociais, étnicas e culturais. É traço marcante do Multiculturalismo o reconhecimento parcial das culturas, como é o caso da política integralista, que apesar de reconhecer a existência da cultura alheia, a considera automaticamente inferior e com necessidade de ser modificada pela cultura mais "civilizada".
       A questão indígena e das minorias em geral continuam, ainda hoje, em foco de discussão e podem passar por séria reviravolta. É recente a entrada de direitos como o voto feminino, políticas afirmativas aos mais pobres e aos afrodescendentes na pauta de preocupações do governo com o novo multiculturalismo erguido pela contra-hegemonia, que coloca os grupos em pé de igualdade reconhecendo suas diferenças e a importância de suas preservações. Porém, mesmo com a consolidação da emancipação, ocorre no cenário mundial uma radicalização da direita com o fortalecimento do neoliberalismo, assim, políticas como a proteção de terras dos indígenas passam a ser desafiadas pelo desenvolvimentismo desenfreado que consome terras, riquezas naturais e atacam direitos grupais indiscriminadamente.

Nome: Diego Sentanin Lino dos Santos
Nome: Gabriel Garro Momesso
Nome: Joelson Vitor Ramos dos Santos 
Nome: Vinicius Araujo Brito de Jesus
Nome: Vítor Silva Muniz

Turma XXXV - Diurno.




Produto da intensa luta simbólica


Sociólogo francês e grande pensador do século XX, Pierre Bourdieu, em seu livro “O Poder Simbólico”, apresenta e aborda a constituição do campo jurídico e a maneira pela qual as personalidades jurídicas interpretam ou compreendem a estrutura do Direito. Nesse contexto, a fim de elucidar a temática exibida e defendida pelo autor, é válido expor a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, a qual possui conceitos e abordagens de Bourdieu intrínsecos ao seu conteúdo. Tal ADPF, solicitada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, tem por objetivo impedir ou reparar o dano ocasionado a um preceito fundamental. Segundo os requerentes, “diversos órgãos investidos do ofício judicante – juízes e tribunais – vêm extraindo do Código Penal, em detrimento da Constituição Federal, dos princípios contidos nos textos mencionados, a proibição de se efetuar a antecipação terapêutica do parto nos casos de fetos anencéfalos”. Diante disso, quais são os principais conceitos do autor francês relacionado com o julgado?
Em primeiro lugar, conforme exposto pelo relator do processo, Marco Aurélio, “mostra-se inteiramente despropositado veicular que o Supremo examinará, neste caso, a descriminalização do aborto, especialmente porque, consoante se observará, existe distinção entre aborto e antecipação terapêutica do parto”. A partir disso, nota-se que a veemência com o qual é diferenciado o aborto da antecipação terapêutica revela que, em 2012, as discussões, especificamente, acerca do “aborto de anencéfalos” estavam dentro do espaço dos possíveis, que, segundo Pierre Bourdieu, limita a atuação e confere legitimidade ao poder jurídico. Se, porventura, fosse tratado o assunto da descriminalização total do aborto, naquele período, provavelmente o Judiciário se desprenderia da sua demarcação de alcance, perdendo autenticidade para aplicar uma decisão.
Em segundo lugar, o relatório apresentado pelo ministro e relator Marco Aurélio contém referências ao “direito de dizer o direito” apresentado por Pierre. Em uma citação, é afirmado que se torna recomendado o “imediato crivo do Supremo Tribunal Federal, evitando-se decisões discrepantes que somente causam perplexidade (...)”, pois “a unidade do Direito, sem mecanismo próprio à uniformização interpretativa, afigura-se simplesmente formal”. Essa citação revela a dimensão do campo jurídico que é formada por relações, competições e referenciais de poder específicos. Como existem diversas interpretações no ambiente do Direito, há a necessidade de sobrepor uma à outra. No caso brasileiro, as maiores decisões são tomadas pelo STF, que possui o poder dominante e regulador dos jogos de lutas encontrados no campo jurídico.
Além disso, na defesa de sua posição, o ministro supracitado afirma que “a questão posta neste processo – inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual configura crime a interrupção de gravidez de feto anencéfalo – não pode ser examinada sob os influxos de orientações morais religiosas (...) para tornarem-se aceitáveis no debate jurídico, os argumentos provenientes dos grupos religiosos devem ser devidamente ‘traduzidos’ em termos de razões públicas”. Diante disso, a neutralização, conforme abordada por Bourdieu, caracteriza-se como parte integrante do campo jurídico. Nesse sentido, o Direito não se torna reflexo da vontade um grupo exclusivo da sociedade, mas se fundamenta na própria razão vigente. Todavia, há de se afirmar que, embora a universalização, isto é, o recurso sistemático que exprime uma certeza através de mecanismos racionais esteja presente no campo jurídico, a neutralização, por vezes, apenas se traveste de impessoalidade. Por esse motivo, “vê-se, assim, que, olvidada a separação Estado-Igreja, implementou-se algo contrário ao texto constitucional. A toda evidência, o fato discrepa da postura de neutralidade que o Estado deve adotar quanto às questões religiosas. Embora não signifique alusão a uma religião específica, ‘Deus seja louvado’ passa a mensagem clara de que o Estado ao menos apoia um leque de religiões”. Não somente isso, mas “o preâmbulo da atual Carta alude expressamente à religião cristã”.
O fato, simultaneamente, de Marco Aurélio citar várias referências para basear seus argumentos demonstra a autonomia relativa (ilusão da independência) do Direito revelada por Bourdieu, haja vista que esse campo assimila referências de outros campos e da própria sociedade, mostrando que as influências externas podem ser processadas pelos agentes internos do âmbito jurídico. Assim, as discussões realizadas dentro do Poder Judiciário, além de estarem embasadas no próprio arcabouço doutrinário, jurisprudencial e constitucional, são motivadas pelo coletivo. No entanto, pelo princípio da irredutibilidade do sociólogo francês, os fundamentos da razão próprios da área jurídica devem se sobrepor sempre, pois o Direito não se reduz às convenções sociais. Por isso, o ministro vai afirmar que “se alguns setores da sociedade reputam moralmente reprovável a antecipação terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos, relembro-lhes de que essa crença não pode conduzir à incriminação de eventual conduta das mulheres que optarem em não levar a gravidez a termo. (...) Ações de cunho meramente imorais não merecem a glosa do Direito Penal.”
Fica evidente, portanto, o vínculo entre os conceitos de “O Poder Simbólico” e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54. O Poder Judiciário, nesse contexto, após toda a questão apresentada, declarou procedente a “ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal”, explicitando seu poder simbólico para instituir em qual momento se inicia e termina a vida. Tal capacidade se dá por meio do capital ou recurso simbólico construído a partir de ferramentas racionais. Consequentemente, percebe-se a importância e a eficácia que os operadores do Direito possuem, através do veredicto, em introduzir mudanças e inovações no meio social. No entanto, as modificações não são realizadas de maneira simples e rápida, mas são concebidas como produto de uma intensa luta simbólica.
Leonardo de Oliveira Baroni - Direito (Noturno).