domingo, 1 de julho de 2018

Pequenos passos como forma de mudança

O eminente sociólogo Portugûes Boaventura Souza Santos traz em seu livro “As Bifurcações da Ordem: Revolução, Cidade, Campo e Indignação” conceitos acerca das possibilidades emancipatórias do direito. Na sua obra, especificamente nos capítulos VI e  VII, verifica-se uma dicotomia sobre esse papel do direito. De um lado, mais otimista, acredita que o direito pode ser provocado e modificado pelas movimentações políticas através dos recursos legais existentes. De outro, mais pessimista, diz que o direito só pode ser emancipatório se a democracia for reinventada. Isso se da pela descrença aos movimentos novíssimos-representados pelas revoltas da indignação- que são caracterizados pela volatilidade, espontaneidade e raiva.

''A ênfase é colocada na ação coletiva e na rejeição radical de um determinado status quo, e não na imaginação de uma sociedade futura melhor. Apela à rebelião ou à revolta mais do que à revolução ou à reforma''.-Boaventura (2016, p.353):


Nesse sentido, com o intuito de analisar qual de fato é o papel o direito na sociedade contemporânea e elucidar os conceitos de Boaventura, cabe abordar essa temática expondo tais conceitos para, depois, junta-los ao julgado.

Em relação à Boaventura, seus conceitos são diversos, mas a ênfase é dada aos dois tipo de direito existentes:  direito configurativo e direito reconfigurativo. O primeiro é um reflexo dos mecanismos sociais da sociedade;o segundo, um devir à dominação existente.

''Direito configurativo é um direito que reflete uma determinada configuração das relações de poder. Se estas relações de poder forem desiguais e destinadas a produzir injustiça e opressão, o direito será igualmente injusto e opressivo''-Boaventura (2016, p.358).

’Direito reconfigurativo é um direito em processo de ser utilizado de modo a alterar as relações de poder e reconfigurar a correlação de forças na sociedade. O direito reconfigurativo é o que esta subjacente àquilo que tenho vindo a denominar o uso contra hegemônico do direito’’.-Boaventura(2016,p 360).

Seguindo a linha de raciocínio do direito configurativo Boaventura aborda suas dualidades. Trata da dualidade abissal, isto é crê que a população está dividida entre os 99%(impotentes) e 1%(dominantes), os quais, a partir da retórica e criminalização dos movimentos sociais, promovem a instrumentalização do direito a seu bel prazer. Trata, também, da dualidade da ilegalidade. Para os poderosos, a ilegalidade é engendrada pela lógica do impunimento, corrupção e fraude;para os impotentes, pela punição excessiva e violência. Interpelando tais conceitos supracitados ao julgado para seu melhor entendimento. Os desembargadores da Décima Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, negaram o provimento ao agravo de restituição de posse ao proprietário da fazenda primavera. Em meados dos anos 2000 o MST, alegando o descumprimento da função social,embasados pelo Art. 5° da  CF, ocuparam a fazenda.

Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residente no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos seguintes termos:
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

A gritante disparidade do acesso à terra no brasil pode ser entendida como uma relação abissal desse direito, sendo os proprietários representantes de uma minoria dominante(1%) e os restante(99%) como alheios a esse direito garantido pela CF. Nesse sentido, o nosso direito , em uma análise configurativa,  mostra-se como reflexo de uma sociedade desigual e injusta. O MST como forma de reivindicar o acesso à terra promove ocupações e a decisão dos desembargadores em negar a restituição da propriedade ao dono representa uma forma de reconfiguração do direito, isto é a partir de pressões sociais e uma hermenêutica diferenciada o direito mostrou-se emancipatório à medida que garantiu o acesso à terra a esse segmento desfavorecido da população. Além disso, é possível destacar que a classe dominante (1%), por meio da dialética, tenta criminalizar e desmoralizar os movimentos sociais-como o MST- alegando ilegalidade e violência. Verifica-se também a presença das duas ilegalidades, pois os poderosos  através de desvios sistemáticos dos princípios constitucionais perpetuam sua presença nas terras, mesmo que essas não cumpram a sua função social. Já os impotentes, no caso o MST, quando tentam promover uma reivindicação são categoricamente coibidos pelo Estado.

Por fim, pelo exposto concluo que, apesar das dificuldades que os impotentes têm em acessar e modificar o direito, esse pode sim ser alterado pelas vias legais existentes. O caso do julgado mostrou que a partir de uma ocupação legítima pelo MST o direito configurado foi reconfigurado em prol de um bem maior. Dessa forma, não há a necessidade de uma reinvenção da democracia. Pelo engajamento social, luta e resiliência as estruturas podem e serão modificadas ao longo do tempo. Afinal, grandes mudanças ocorrem a partir de pequenos passos. De dentro para fora.

Alexandre Bolzani Morello - Direito XXXV: Noturno

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