segunda-feira, 11 de junho de 2018

O Aborto de Anencéfalos, a Ética e a Legislação Brasileira

Anencefalia: malformação congênita caracterizada pelo defeito no fechamento do tubo neural do feto, levando à ausência completa ou parcial do cérebro e do crânio do mesmo. De fato, tal problema é incompatível com a vida, visto que apenas 25% dos anencéfalos apresentam sinais vitais na primeira semana após o parto, além de a gravidez em si resultar em inúmeros prejuízos para a mãe durante a gestação, como a eclampsia, embolia pulmonar, aumento do líquido amniótico e até a morte materna. Assim, após inúmeros debates em torno do assunto, foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, a legalização do aborto em casos de anencefalia, gerando a constante polêmica sobre a partir de que momento em uma gestação é considerado vida e a ética envolvida na possível interrupção desta.
A discussão foi iniciada em 2004, com a propositura da ação pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, e levou oito anos para ir a plenário. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF 54), a entidade pedia que o Supremo fixasse o entendimento de que antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico não é aborto, permitindo que gestantes nesta situação tivessem tal direito sem a necessidade de autorização judicial ou qualquer permissão específica do Estado. Assim, para alcançar tal aprovação legislativa, utilizou-se como estratégia a judicialização que, sob o ponto de vista de Bourdieu, tem legitimidade, pois a decisão favorável ao aborto foi tomada a partir do direito, o qual é caracterizado por: universalidade (visto o alcance a todas as mulheres), possibilidade do uso da hermenêutica (privilegiando a mãe a partir da interpretação dos princípios positivados da Constituição), neutralidade (observada na postura dos magistrados) e a multidisciplinaridade para tomada de decisões (STF considerou os estudos da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero).
Analisando a legislação brasileira, antes dessa discussão em questão, já tinha sido aprovada a opção pelo aborto em caso de estupro ou de risco à vida da mãe, com base no quesito da liberdade de escolha da mulher. Levando esses fatos em consideração, como dito pelo próprio relator do processo de legalização do aborto de anencéfalos: "Cabe à mulher, e não ao Estado, sopesar valores e sentimentos de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez (de anencéfalos)".
Embora tenha fundamento nos princípios da Dignidade Humana, Legalidade, Liberdade e Autonomia da vontade, além do direito à saúde da grávida de feto anencéfalos, a decisão tomada pelo STF foi alvo de críticas, muitas delas baseadas, principalmente, em argumentos de cunho religioso. Todavia, a análise para o caso apresentado deve ser o mais objetiva possível, pois o Direito não visa o atendimento de aflições religiosas e passionais, e sim a resolução de conflitos aos quais todos estão sujeitos.
É neste ponto que a Lei 9.434/97 é levada em conta. De acordo com o art. 3º de tal norma, a retirada de órgãos só poderá ocorrer após o diagnóstico de morte encefálica, atestada por dois médicos. Portanto, a causa desse óbito é válida como critério quando se trata da remoção de órgãos e tecidos, com o objetivo de transplante.
 Nota-se que o mesmo critério foi explorado quando da apreciação da ADPF 54, tendo em vista que a morte encefálica do feto é fato consequente do seu nascimento, pois este possui malformação do tubo neural, conforme explanado. Contudo, apesar de o raciocínio apresentado possuir lógica, o mesmo foi fortemente questionado quando da tramitação da ADPF 54, a qual foi iniciada em 2004, e somente concluída em 2012, sob fortes manifestações e críticas contrárias à decisão tomada.
A partir do exposto, causa estranheza que a adoção do critério encefálico tenha sofrido questionamentos por aqueles que não apoiaram a decisão do Supremo Tribunal Federal em relação ao assunto em comento. Isto porque se percebe, pelo menos, dois aspectos basilares para a aplicação da lógica ora explanada.
Num primeiro momento, pode-se afirmar que a condição à qual o feto anencéfalo é submetido não permite que qualquer outro critério seja adotado, isso porque a malformação de seu tubo neural já implica na consequente morte, quando desligado do sistema de sua genitora.
Por outro lado, tem-se o apontamento de que o critério de morte encefálica (e não cardiorrespiratória) já é utilizado para outras finalidades, como para remoção de órgãos e tecidos, conforme ressaltado.
Logo, não há que se falar na não aplicação do supramencionado critério para a situação ora descrita, ou mesmo que outra poderia ser a fórmula de raciocínio utilizada, uma vez que para os casos de anencefalia, a vida extra-uterina resta impossibilitada.

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