segunda-feira, 11 de junho de 2018

A lógica interna do Direito à luz de Bourdieu e a ADPF 54


O Direito como um sistema simbólico que, segundo Pierre Bourdieu, é uma esfera da sociedade, dimensão invisível – campo, que engendra símbolos próprios na constituição social com a finalidade de se distinguir. Portanto, dentro do campo jurídico há estruturas- símbolos- próprias como a linguagem jurídica e as instituições que compõem essa esfera, por exemplo, os tribunais.A lógica interna desse sistema é fundamentada pelo conjunto das normas (Constituição Federal e Códigos), jurisprudência (autonomia relativa do intérprete da lei) e doutrinas (teóricos que possuem capitais simbólicos suficientes para racionalizar e formalizar o sistema). Assim, para se discutir o julgado a respeito da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, analisemos a lógica interna do Direito.

A priori, a Constituição Federal, no que tange ao surgimento da personalidade civil da pessoa natural, é fundamentada à luz da teoria conceptista como posto no artigo 2º do Cógido Civil brasileiro: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”; isto é, personalidade jurídica da pessoa natural é adquirida desde a concepção. Contudo, partindo para a discussão da origem da vida, comecemos pela definição do momento de morte que é dada pelo decreto médico da falência encefálica, de acordo com o Direito brasileiro, ou seja, a morte é pautada no aspecto neurológico. A anencefalia, seguindo tal perspectiva neurológica da morte, não deve ser considerada vida uma vez que o feto, ao ter sofrido má formação de seu sistema nervoso, não é passível de perspectiva de sobrevida. Se não é considerada vida, a interrupção da gravidez anencefálica não pode ser considerada aborto e sequer ser punida como preveem os artigos 124, 125 e 126 do Código Penal.

Após tal abordagem, nota-se que o “espaço dos possíveis” do campo jurídico, em seu significado para Bourdieu, sendo o espaço de atuação do Direito e seu ordenamento, foi alterado pela jurisprudência amparada na Constituição Federal. Outra alteração do “espaço dos possíveis” feita, pela jurisprudência no caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, é a levantada pela ministra Cármen Lúcia, quando essa faz objeção ao artigo 128 do Código Penal, inciso I: Aborto necessário se não há outro meio de salvar a vida da gestante. A ministra alega que "vida" nesse dispositivo está sendo tratada apenas em seu sentido biológico, isto é, considerando apenas a saúde física da gestante; ao passo que uma vida digna deve ser composta de um estado saudável tanto no aspecto físico, quanto psíquico. Ao criminalizar a interrupção da gravidez no caso de fetos anencéfalos, é desconsiderar o abalo psicológico que a mãe sofrerá durante a gestação ao ser indagada por terceiros sobre quando a criança irá nascer, sendo que não expectativa de sobrevida para essa, ou então, ao ser abordada por um filho ou sobrinho relatando as brincadeiras que eles realizarão com a criança gestada quando essa nascer. Assim, a magistrada ao adaptar o sistema jurídico à realidade, exerce sua função conforme visto no conceito de "divisão do trabalho jurídico" de Bourdieu.

Por fim, deve-se quebrar a ilusão de independência do Direito em face das relações de forças externas como visto pela APF 54 e defendido na teoria de Bourdieu. O Direito não está alheio às forças externas, pois, uma vez que esse campo para se legitimar e concretizar seu poder simbólico sobre os indivíduos e os demais sistemas, utiliza-se da racionalização universal. Por sua vez, o Direito deve exprimir uma certeza do que é de fato e não do que “deveria ser” e para atingir tal objetivo é fulcral a incorporação de discussões que estão emergindo da sociedade em seus ditames para que as normas continuem com sua legitimidade e caráter universal intactos. 

Sabrina Santos Macedo     turma XXXV - diurno 

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