domingo, 8 de abril de 2018

Modernismo e Flávio de Carvalho: a delineação analítica do fato social

A relação do homem com seu ambiente conduz a aspectos específicos e paralelos da análise e criação em seu tempo histórico. De certa forma, o método sociológico é um elemento palpável com destinação ao primeiro aspecto citado e à sua respectiva significação objetiva. Por outro lado, a criação, o qual comumente refere-se à singularidade, pode ser manifestada, entre outros, pela arte e pela cultura em naturezas abstratas. Estes aspectos, no entanto, devem ser ressaltados mediante à articulação de suas formas, de modo a abarcar referências coercitivas da sociedade, palavra que remete ao objeto de estudo da sociologia funcionalista: o fato social, apresentado por Émile Durkheim como uma resposta à consolidação do corpo coletivo. 

O vislumbramento de um objeto de estudo inseparavelmente acompanhou a conceituação de um método, o qual parte da definição do próprio fato como maneiras de sentir, agir e pensar abrangentes aos membros da sociedade, deste modo, até mesmo revelações individuais possuem uma condição social. De modo técnico, o método sociológico deveria obedecer regras empírico-indutivas, as quais pretendem observar fatos sociais como coisas, isto é, sem juízos de valor, e vistos à sua exterioridade. As concepções deveriam ser processuais, eliminando ideias sobre política, direito e moral, para uma análise real do fato. Sobre o âmbito psicológico, Durkheim reconhece a dificuldade e a associação entre o objeto da psicologia e o fato social, porém se dedica a assinalar como fatos emocionalmente diversos findam na representação coletiva. A orientação emocional, portanto, estaria igualmente relacionada ao exercício de um reflexo social, operando, em fenômenos de massa, uma pressão de natureza coletiva. 

Como exemplo de tais afirmativas, apesar de visar um firmamento performático das teorias freudianas, o ato do arquiteto Flávio de Carvalho o qual resultou na publicação de Experiência n. 2 reverbera sobre a sociologia de durkheimiana. Realizada no ano de 1931 em uma procissão de Corpus Christi no centro de São Paulo, a experiência do artista consistiu sobretudo em caminhar em sentido oposto vestindo um boné de feltro verde; tal atitude reverteu-se na fúria dos fiéis, os quais manifestavam coletivamente a religião. Após duas décadas e meia, o artista vem a repetir seu ato em sua Experiência n. 3, ocasionando resultado semelhante de aversão. Em seu primeiro relato, o artista cita: 

"Esta ação reflexa é comum à vida da humanidade. O homem sempre procura se refugiar sob a proteção do objeto mais próximo no instante de perigo ou de insegurança: o gesto de querer cobrir a cabeça com um lençol ou uma capa, num início de catástrofe ou de tapar os ouvidos, apertar um objeto na mão ou cerrar os pulsos, enterrar o chapéu na cabeça de raiva, acender um cigarro na hora do perigo ou em sinal de desprezo (...) todos mostram como o homem procura sempre uma companhia, mesmo quando pouco palpável, uma amiga que ature e descarregue uma concentração de energia" (CARVALHO, Flávio de. p. 66)


O arquétipo da experiência moderna de Flávio de Carvalho, do flâneur retomado às ruas de São Paulo, remete a outro conceito utilizado por Durkheim: a solidariedade. Em sua obra, A divisão do trabalho na sociedade, o autor busca explorar a essência da alma coletiva, compondo tipos estruturais de determinação e causa, os quais buscam primordialmente a restituição ou a repressão coercitiva de parcela do corpo social. As causas especificamente, entretanto, concerniriam-se por meio da solidariedade, de modo o que sua provocação, isto é, a dissolução determinada, seria o próprio direito, que no caso refere-se às penalidades descritas aos crimes cometidos. A motivação, portanto, seria mútua e coincidente, atingindo a obrigação do transgressor a retornar aos seus hábitos preconizados. 

A consistência modernista nas experiências do artista brasileiro reflete-se na inerência da contravenção, o que confirma a sociabilidade e consequentemente a virtude criativa de oscilar o plano social. Admitir a sociabilidade da arte é, consequentemente, aferir uma limitada individualidade e abstração quanto ao seu produto. Ainda assim, em conclusões mais amplas, o fenômeno artístico abarca diferentes ângulos interpretativos, sejam eles psicológicos, históricos, filosóficos, estéticos ou sociológicos; basta, em vista desta asserção, reconhecer o objeto de criação como um trânsito rigorosamente humano-social e utilizá-lo de modo a compreender ainda mais suas próprias ciências de análise.


Bibliografia:
DURKHEIM, Émile. “Que é fato social?”. In: As Regras do Método Sociológico (1895). São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1987

DURKHEIM, Émile. “A solidariedade devida à divisão do trabalho ou orgânica”. In: A Divisão do Trabalho Social (1893). 2.a Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999

BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. 1970, São Paulo: Companhia Editora Nacional. 

CARVALHO, Flávio de. Experiência n.2: realizada sobre uma procissão de Corpus Christi: uma possível teoria e uma experiência. 1931. 2.a Ed. São Paulo: Irmãos Ferraz, 1931 (Adaptado). Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2116


Imagem disponível em: http://www.gravura.art.br/media/catalog/category/flavio_de_carvalho_galeria_de_gravura.jpg 
(Flávio de Carvalho durante a "Experiência n. 3", intervenção realizada pelo artista em 1956, na região central de São Paulo: em defesa do new look, traje masculino de verão concebido pelo artista.) 

Marco Antonio Raimondi, Direito Noturno
Turma XXXV






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