domingo, 26 de novembro de 2017

Sobre conservadorismo, religião e dignidade da pessoa humana

          O sociólogo Pierre Bourdieu, em sua obra “O Poder Simbólico”, discorre acerca da ciência rigorosa do Direito, a qual enfoca este como sendo objeto de estudo, devendo evitar-se o instrumentalismo e o formalismo. Enquanto o primeiro refere-se à ideia de Direito a serviço da classe dominante, o segundo explicita-se como um entendimento do Direito como força autônoma diante das pressões sociais. Assim sendo, a ideologia de Bourdieu pode ser empregada em um contexto relativamente atual, no qual a Ação de Descum­­primento de Preceito Funda­men­tal (ADPF) n.º 54, exteriorizada pela Confederação Nacional dos Tra­­balhadores na Saúde (CNTS), pretende assegurar o direito de escolha da gestante pela interrupção (ou não) da gravidez em caso de feto anencéfalo.
          Tal condição clínica pressupõe uma má-formação grave do sistema nervoso central, sendo esta incompatível com a vida a longo prazo. Desse modo, é constatado que o feto anencéfalo não representa uma vida em potencial, uma vez que o início da vida cerebral não concretiza-se. Nesse contexto, o instrumentalismo firma-se em uma sociedade cuja burguesia, não raro, conservadora, dita os possíveis desencadeamentos da vida jurídica e suas consequências danosas para aqueles os quais não pertencem à classe dominante. Tal qual o instrumentalismo, o formalismo evidencia-se através do controle religioso sobre um Estado constitucionalmente tido como laico, fato averiguado através da presença de uma forte bancada religiosa no poder.
          Nessa conjuntura, a aliança entre burguesia conservadora e bancada religiosa culmina em medidas as quais propõem ideologia “pró-vida” e elucidação do princípio da dignidade da pessoa humana em relação ao feto anencéfalo. Tais fatos não levam em consideração o sofrimento físico e psíquico o qual deve ser enfrentado pela gestante em caso de uma gravidez de feto anencéfalo e nem o princípio da dignidade da pessoa humana em relação à esta. Em uma sociedade embasada em princípios de liberdade, previstos na Constituição Federal, a escolha pela interrupção da gravidez em caso de feto anencéfalo não deveria estar sendo posta em xeque, visto que deveria versar sobre o livre arbítrio feminino para agir de acordo com convicções pessoais.
          Portanto, a inexistência de uma vida em potencial em anencéfalos atrelada à criminalização da prática do aborto em tal situação é responsável por imensurável sofrimento à várias gestantes que encontram-se na referida condição, sendo observada uma transgressão ao princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa maneira, decisões jurídicas fundamentadas no conservadorismo de uma classe dominante, bem como em acepções religiosas em uma sociedade laica, devem ser repensadas. Como consequência, o instrumentalismo e o formalismo usualmente combatidos por Bourdieu não firmar-se-ão em solo tupiniquim, corroborando com preceitos constitucionais e democráticos.

Isadora Mussi Raviolo - 1º ano Direito (Noturno)

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