quarta-feira, 15 de novembro de 2017

O julgamento da ADI 4277, que se deu de forma conjunta à ADPF 132, representou não só o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, conferindo-lhe todos os direitos e deveres de uma união estável; como importou numa ampla quebra de paradigmas para o Direito das Famílias brasileiro e asseverou, sobretudo, a valorização e a devida preponderância dos direitos fundamentais da igualdade, liberdade, autonomia, isonomia e segurança jurídica.
A saber: o objeto das ações se dera na reivindicação da interpretação do artigo 1.723 do Código Civil de acordo com a Constituição: o artigo que reconhece como “entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher” deveria, portanto, ser percebido à luz do Magno Texto. O ponto coerentemente pretendido liga-se, principalmente, ao Art. 3º, IV, CF, que exalta entre os objetivos da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Permeada por esses pressupostos é que se teve uma decisão que chamou a atenção pela sua homogeneidade: as ações foram julgadas procedentes por unanimidade, com grande parte dos ministros tendo inclusive acompanhado na integralidade o voto do ministro relator Ayres Britto.
Perpassadas as condições jurídicas do processo e seu fundamento, chama a atenção o quão historicamente importante e paradigmático fora evento, mesmo que embora, na prática, os tribunais e magistrados do 1º grau já vinham reconhecendo, antes da referida decisão, pensão por morte, partilha de bens, declaração conjunta de imposto de renda, direito real à habitação, entre outros devidos direitos, aos casais homossexuais. Tal situação acaba por nos conectar frontalmente ao texto “Luta por reconhecimento: a gramatica moral dos conflitos sociais”, de Axel Honneth; e com ele dialoga, em especial com uma das dimensões do reconhecimento elencadas pelo autor: a do Direito.
O autor evidencia nesta dimensão a relação direta e intrínseca em reconhecer os indivíduos igualmente para que assim estes se reconheçam e possam conceber-se de modo irrestrito como seres autônomos e individualizados. Vê-se tal pensamento na ideia de que só é possível se dar a desejada obediência às normas jurídicas quando os “parceiros de interação” se sentirem livres e iguais por meio delas; ou ainda como Honneth revela na premissa de que a partir da obediência a uma mesma lei – no sentido isonômico da expressão − é que os sujeitos de direito poderão se reconhecer reciprocamente. Justamente ao redor destes pressupostos é que gira a questão de se legar à união homoafetiva o caráter de entidade familiar: negar tal reconhecimento, além de reforçar injustiças culturais, acabaria por comprometer a capacidade de indivíduos viverem a plenitude de suas existências; ou como coloca o autor, estaria comprometendo os sujeitos humanos de poderem chegar a uma atitude positiva para com eles mesmos – dai o peso e a importância devidamente conferidos a essa decisão histórica do STF, mesmo que, na prática, os direitos desejados já vinham sendo concedidos em certa medida.
Numa ampla análise, vê-se que qualquer pretensa argumentação contra o acertado reconhecimento gira em torno de aspectos reducionistas ou de algum “legalismo normativista deturpado”, como se faz por meio do artigo 226, § 3º, CF, que enuncia o “entre o homem e a mulher”. Ora, como ressalta o próprio ministro relator Ayres Britto, em seu voto, fazer uma aplicação literal acaba por impensável em um contexto de uma constituição que relega ao Estado o dever de não discriminar e reconhecer como sujeitos de direitos todos os cidadãos – em suas palavras: “uma interpretação jurídica acanhada ou reducionista seria o modo mais eficaz de tornar a constituição ineficaz”. Cabe-se o adendo, e agora se amparando no pensamento do ministro Luiz Fux, a apreciação do “entre o homem e a mulher” teria, na verdade, a intenção de tirar a marginalidade da união estável, distante de qualquer cobiça restritiva de gênero, sendo, portanto, “perverso conferir a uma norma de cunho indiscutivelmente emancipatório uma interpretação restritiva”.

Dessa forma, tivera-se na situação, de um lado, um legislativo omisso, sonolento e acovardado – já que existiam diversos projetos arquivados, ou esbarrados em comissões parlamentares, sobre o reconhecimento de uniões homoafetivas desde a década de 90 −, que se negara a admitir uma política de reconhecimento de “um segmento da sociedade que vive parte importantíssima de sua vida na sombra”, como coloca Fux, negando-lhe, assim, amor, auto-respeito, auto-estima e a possibilidade de auto realização de um ser autônomo. E de outro lado – felizmente vitorioso −, uma corte homogênea e consensual, que fez valer os Direitos Fundamentais de igualdade, liberdade e, movida pelos “sentimentos morais de injustiça”, ligada às experiências morais de desrespeito, marcando, dessa forma, presença na história do Direito de Família brasileiro e deixando em alto e bom tom que a orientação sexual de uma pessoa jamais deve ser usada como fator de desigualação, sobretudo, jurídica. 

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