segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Flores do Amanhecer

Uma análise cuidadosa e apropriada sobre a interrupção da gravidez de feto anencéfalo demanda, primeiramente, um recorte temático. Deve-se assumir, portanto, algumas premissas: a) uma postura favorável ao aborto (que não será aqui discutido), ao menos até um limite temporal considerado tolerável para tal prática, abarcaria, inevitavelmente, os fetos anencéfalos; b) uma vez que não se considera tal natureza de interrupção de gestação como aborto, resta-nos analisar aquilo que diferencia o feto anencéfalo de um feto “comum”.
Uma postura a favor do forçado termo de gravidez que envolva o feto desprovido de encéfalo encontra, ao menos no caso brasileiro, um bom respaldo no Direito. Isso porque nosso sistema jurídico é preciso ao afirmar que o fim de uma vida humana é marcado pela irreversível interrupção da atividade cerebral. Ou seja, o fim da atividade cerebral marca o término de uma vida. No espectro do referido assunto, as implicações parecem claras: em um ser onde sequer há cérebro, não pode haver vida.
      Todavia, a postura adotada pelo ordenamento nacional no que diz respeito ao critério utilizado para se averiguar o fim de uma vida é, na abordagem bioética, questionável. Atividade cerebral realmente é sinônimo de vida? Ainda que sob análise grotesca, a resposta, do ponto de vista biológico, é clara: não. Mesmo quando se fala sobre o reino animal, existem diversos exemplos onde ocorre a ausência de um concentrado de massa encefálica. Em alguns casos sequer há a presença de um sistema nervoso. Chegamos à primeira conclusão: há vida junto ao feto anencéfalo. Mesmo a argumentação favorável à possibilidade de interrupção desse tipo de gravidez é cuidadosa ao mencionar uma “inviabilidade” inquestionável de sobrevivência desses indivíduos, questionando a possibilidade da vida vir a se concretizar, se valeria à pena submeter a mãe a esse processo e se o ser existente nesse ventre realmente corresponde a um ser humano. Todavia, a vida em si não é questionada.
      A discussão, então, passa a enfocar essa “inviabilidade” de manutenção da vida. O próprio ministro do STF, Luís R. Barroso, afirma: “o feto anencefálico não terá vida extrauterina”, comentário equivocado, pois, ainda que as chances de sobrevivência do feto sejam baixas, existe a efetiva possibilidade de sobrevida, ainda que por curto tempo (http://delmosaud.blogspot.com.br/2012/04/anencefalia-os-casos-de-marcela-e.html).
 Estendendo-se o argumento da inviabilidade: por exemplo, o indivíduo que possui um grave problema cardíaco pode ter, no útero materno, em uma sociedade onde o aborto é proibido, seu desenvolvimento forçosamente interrompido? Sem dúvida, a resposta afirmativa abre precedente para novos questionamentos, que colocam em cheque aquilo que, ao menos para os referidos fins, compreendemos por inviabilidade. Ora, se o argumento é, por si só, as baixas chances da vida ter continuidade, ou, por mais absurdo que seja, a própria ausência da condição humana, poderia o indivíduo anencéfalo ser descartado depois de nascer?
Até que ponto a inviabilidade deve ser considerada para se autorizar a interrupção de uma gravidez? A situação fica ainda mais delicada ao se levar em conta que a anencefalia se manifesta em diferentes níveis. Ademais, existem os pendentes embates no meio ético e científico no que se refere àquilo que efetivamente caracteriza a condição humana. A referida prática deveria ser descriminalizada em um ambiente de tamanhas incertezas?

Higor Caike                                                                                          Direito, Noturno - 1º ano


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