domingo, 22 de outubro de 2017

Entre Ideais, Julgados e Emancipações

    A discussão acerca das cotas no Brasil é extremamente relevante no âmbito econômico-social em que o país se encontra. Tomemos o caso da Universidade de Brasília (UnB). Com a criação de reserva de 20% das vagas no vestibular, por um período de 10 anos, para estudantes autodeclarados negros (pretos e pardos) em todos os cursos oferecidos, o partido Democrata (DEM) abriu uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ação que foi julgada improcedente.
    A ação foi pautada sobre a tese de que tal medida (implantação de cotas raciais) fere preceitos fundamentais e estruturantes do Estado brasileiro, bem como configura clara inconstitucionalidade. Mas é importante exaltar que não se visa discutir ações afirmativas em seu sentido amplo. Trata-se fundamentalmente do uso da raça como fator discriminante, isoladamente, como sendo critério válido, legítimo, razoável e constitucional para diferenciação entre o exercício de direitos dos cidadãos. Seria correto afirmar que, exclusivamente por conta da raça, o acesso aos direitos fundamentais é negado aos negros? Ou tal acesso é restringido porque atrelado à condição econômica?
    É inegável a influência histórica de determinação da condição social do negro com a problemática econômica. É inegável que a massa populacional de mais baixas condições financeiras é predominantemente negra. Mas não trata-se aqui de buscar uma solução para um problema racial, mas para um problema socioeconômico. Uma solução (as cotas), infelizmente, muito mal executada.
    De acordo com Villas-Bôas, Ações Afirmativas são um “conjunto de medidas especiais e temporárias tomadas ou determinadas pelo Estado com o objetivo específico de eliminar as desigualdades que foram acumuladas no decorrer da história da sociedade”. Entretanto, tal caráter temporário não se encontra presente na realidade brasileira. O sistema de cotas e os programas assistenciais socioeconômicos (para citar alguns) são implantados sem o acompanhamento de políticas de reestruturação social que possibilite futuramente vencer o problema. A longo prazo, de nada adianta a implantação do sistema de cotas sem a reestruturação e efetiva melhora do ensino público do país. Cotas para negros nas universidades ou em concursos públicos não resolvem o problema. Apenas mascaram a realidade, na medida em que revelam apenas uma política simbólica de custo zero (visto que a quantidade de vagas universitárias não são ampliadas). E, ainda, generalizar que todo negro necessita de assistência estatal, seria semelhante a cultivar um determinismo biológico, caindo em erros como o de Garófalo e Lobroso e “seus criminosos natos”, e ignorar completamente a miscigenação no país. Os fatores biológicos não determinam a existência e a realidade concreta. A maioria dos casos não são todos os casos. Se o problema é a condição social e econômica, por que voltar à questão racial? Por que não focar no cerne do problema e solucioná-lo de forma efetiva, em vez de mascarar a realidade sob um ideal de ordem e de boa sociedade?
    Por outro lado, temos a perspectiva das Ações Afirmativas como instrumento contra os efeitos do racismo na sociedade. Como mecanismo de integração social, étnica e racial, tratando-se de uma das mais avançadas tentativas de concretização do princípio jurídico da igualdade.
Joaquim Barbosa classifica Discriminação Intencional, ou Tratamento Discriminatório, como quando “a pessoa vítima de discriminação é tratada de maneira desigual, menos favorável...”.As cotas não configuram, assim, um ato discriminatório inconstitucional e racista, por não se tratar de uma ação negativa. Muito pelo contrário… Segundo Carmen Lúcia Antunes Rocha (apud Joaquim Barbosa), “a definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por essa desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A Ação Afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias”.
    Boaventura de Sousa Santos questiona a possibilidade do Direito ser, além de um mecanismo regulamentador, também um de emancipação. Entretanto, segundo ele, continuamos sempre obcecados pelas ideias de uma ordem e de uma sociedade bons, fazendo com que fiquemos presos ao passado e às teorias, a ponto de ignorarmos a realidade concreta. Estamos mais ligados ao Direito religioso do que ao Direito secular, mais à revelação do que à revolução. A situação das cotas, assim, reflete uma busca idealizada, mascaradora da realidade, sem de fato o objetivo de emancipação social. Trata-se de um passo inicial fundamental ao processo. Porém, inicial. As cotas representam uma Ação Afirmativa positiva e necessária para a superação da triste realidade do país, mas somente como medida transitória e temporária.

    O Direito pode sim ser usado como pleno mecanismo de emancipação. Entretanto, eu, particularmente, sou cético demais e demasiadamente descrente na incorruptibilidade humana para me iludir de que viverei o suficiente para presenciá-lo.

Abner Santana de Oliveira- 1º Ano. Direito. Noturno.

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