sábado, 5 de agosto de 2017

Meritocracia à luz de Descartes e Bacon



         René Descartes e Francis Bacon são importantes nomes entre os pressupostos epistemológicos para a base do pensamento, encarados como essenciais para os pilares da Ciência Moderna. Reivindicam para o homem a interpretação do mundo e defendem uma ciência baseada no real, liberta de sentimentos e guiada pela conexão da razão com a experiência. Procura-se, assim, o pensar orientado pela observação e pela experiência, tendo como intuito uma ciência transformadora e capaz de mudar o mundo.
            Com base nessa concepção de ciência moderna da qual fazem parte Descartes e Bacon, observa-se a presença de discussões nas quais o simples posicionamento intuitivo desprovido de uma análise realística se mostra insuficiente. A meritocracia, nesse sentido, se traduz, à primeira vista, em uma forma tentadora de encarar a realidade social e econômica de um país. Por definição, trata-se de um sistema segundo o qual a sociedade é hierarquizada com base no mérito pessoal de cada indivíduo, ou seja, é o poder do mérito considerando apenas o desempenho e esforço individual como propulsores do sucesso. Com isso, a ideia de premiar aqueles que se “esforçarem mais” ou tiverem mais talento parece, na teoria, lógica e coerente. Isso, de acordo com os dois pensadores, seria uma consideração advinda da razão, que levaria a crer na adequação desse sistema à dinâmica da sociedade.
            No entanto, faz-se necessário analisar se de fato esse conceito pode ser aplicado na realidade. Nesse sentido, Descartes e Bacon defendiam um choque entre a razão e a experiência. Apesar de a meritocracia aparentemente ser lógica, no caso brasileiro esconde por trás de si uma complexidade que só pode ser compreendida ao conectar a razão com a realidade. Surge o questionamento se essa dinâmica representa de fato a realidade e se é possível afirmar que os indivíduos partem das mesmas oportunidades, o que é feito por meio da observação e experiência. Como disse Bacon, é preciso olhar o problema no país mais de perto, a fundo. Depreende-se da realidade brasileira uma falsa percepção da lógica do merecimento, que passa a ser questionável na medida em que não se pode pensar em um sistema baseado no mérito pessoal numa sociedade marcada pela extrema desigualdade e em que as condições não são as mesmas entre aqueles que almejam a realização pessoal. Bacon defende a teoria de que os ídolos são obstrutores do conhecimento e da verdade, são falsas percepções do mundo que impedem que a razão entre em choque com a observação da realidade de maneira a desvirtuar-se de princípios pessoais já consagrados. Descartes, nessa mesma linha, afirma que é preciso antes “vencer a si próprio” para depois encarar o mundo e transformá-lo.
            Torna-se claro, a exemplo da situação brasileira, que falar de meritocracia é desconsiderar que as pessoas não partem do mesmo lugar social e por isso não podem ser hierarquizadas exclusivamente com base no esforço individual. Afinal, uma série de questões devem ser levadas em conta para definir o sucesso de alguém, como a dificuldade em ter acesso a uma educação de qualidade, problemas familiares, falta de oportunidades, preconceito, dificuldades financeiras, entre outros. O discurso da meritocracia, de certa forma, desresponsabiliza o Estado e transfere a culpa do fracasso do indivíduo na sua falta de esforço pessoal. Um exemplo é a crítica dos defensores da meritocracia à implantação de ações afirmativas, como as cotas, na forma de reparação da desigualdade social e visando uma maior diversidade no acesso ao ensino superior público. Acreditar que todos partem do mesmo nível e que, portanto, deve-se considerar apenas o mérito individual de cada um na busca pelo ingresso na faculdade é ignorar a realidade social e histórica no Brasil que não permite que haja uma igualdade de oportunidades, além da herança escravocrata refletida nas dificuldades da população negra em se adaptar à sociedade.
            Conclui-se, assim, que é possível notar aplicações diretas de Descartes e Bacon, importantes nomes na formação da Ciência Moderna, em questões cotidianas. A necessidade de conciliar a razão com a experiência, defendida pelos pensadores, se traduz em exemplos práticos como a discussão sobre a meritocracia no Brasil. Quanto a esse sistema que defende o poder do mérito, torna-se claro que para que essa dinâmica de fato funcionasse seria necessário que a desigualdade entre ricos e pobres fosse reduzida, o que passaria pelo investimento público em educação de qualidade e programas de ajuda às camadas menos favorecidas. Isso seria o ponto de partida para considerar um discurso em que todos partissem da mesma condição visando o sucesso pessoal.
Gustavo Garutti Moreira – 1º ano Direito Matutino

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