sexta-feira, 4 de novembro de 2016

A "discriminação positiva" e o jeitinho brasileiro.

Discriminação
S.f. Ação ou efeito de discriminar, distinguir ou diferenciar.
Ação de afastar, segregar ou apartar.

 Ao leitor mais atento e inteligente, perceberá que houve mudança drástica da percepção do “Direito” do primeiro caso apresentado para este. Naquele, o direito era opressor. Aqui, defensor dos oprimidos. Já indo ao encontro de Boaventura (que se esbarra em Hegel, o “vilão” de outros tempos, que lia o Direito sob lentes de libertação) aqui falamos sobre a instrumentalização do direito, que pode ser emancipatório ou excludente, de acordo com quem (e porque) se utiliza dele. É o que consiste em fazer uma “ruptura com a noção hegemônica de Direito”, ele diz: “Uma coisa é utilizar um instrumento hegemônico num dado combate político. Outra coisa é utilizá-lo de uma maneira hegemônica”.
É incontestável que o Brasil tem, constitucionalmente, o objetivo fundamental de construir uma sociedade livre, justa e solidária, assim como promover a redução das desigualdades, sem preconceito de raça ou qualquer outra forma de discriminação. Por óbvio, também não se nega que a população negra sofreu por muitos anos e ainda sofre com uma discriminação racial que, muitas vezes, nos reduz as oportunidades, que nos leva a uma situação de “Pré-contratualismo”, que trata Boaventura, em que “consiste em impedir o acesso à cidadania a grupos que anteriormente se consideravam candidatos à cidadania”. Esse acesso, segundo o autor, está em um “duplo”, que tenciona entre regulação social e emancipação social e o Direito seria o promotor dessas mudanças sociais, uma vez que os combates pela inclusão social se daria nos “moldes” capitalistas, liberais de contrato, ou seja, a inserção deveria ser jogada de acordo com as novas regras, não mais com as estratégias revolucionárias de séculos anteriores.
A minha percepção que surge é de um cosmopolitismo subalterno, do qual trata Boaventura, porém, que abarca apenas uma manifestação de exclusão da periferia do mundo, enquanto deveríamos lutar (e melhorar) as condições de todas as vertentes minoritárias com ações que realmente mostrassem eficiência e inclusão. No que tange a isto, o autor lista 3 tipos de ação da legalidade cosmopolita em relação à não-cidadania: que seria a ação global mediante reivindicação da política internacional de direitos humanos; a ação nacional acionando o Estado para a garantia de níveis mínimos de inclusão e a ação local reivindicando a defesa de determinada comunidade diante a ação de forças de exclusão externas (legais ou ilegais). Recorrer ao direito é legitimo, ainda mais se vivencia em uma sociedade estratificada, como pontua o autor: em uma “sociedade civil incivil”. Que é formada pelos totalmente excluídos, contudo, a ótica enfeixada, que mira em apenas uma parcela do problema, e faz dela palanque ideológico, merece todas as ressalvas, pois pode levar o que Boaventura chamou de “fascismo social” em que “para se defenderem” (aqui, imagino também em defenderem seus pontos de vista) as pessoas enfeixam “enclaves fortificados” e acabar por furtar-se ao debate real sobre as questões, tal qual faz o Estado. Outro ponto salutar e passível de reflexão, é utilizar do Estado para tal, justo ele o causador e legitimador de todas atrocidades cometidas contra a humanidade em séculos anteriores, juntamente com o Direito e a religião.
Contudo, com inúmeras ressalvas, talvez a luta por igualdade do século XX tenha esbarrado nos 20% do nosso século. Por que contentar-se com 20% se, com a honesta e real emancipação, poderíamos ter 100%? Os 20% é a personificação do “jeitinho brasileiro” e da “cordialidade forjada” de nosso povo. Os 20% nada mais é do que a falência do Estado, em não dar conta, durante 128 anos, de promover uma educação salubre, integra, honesta e que abarque todos os campos sociais. Os 20% é a manifestação de um paternalismo atávico, que tenta a todo modo “amansar” cidadãos com “mimos, afagos” e deixar de lado o que realmente importa: a mudança social, econômica e educacional do país, que é precária. Os 20% é deixar de vez os apontamentos constitucionais de isonomia, de alcance de um país mais educado (haja vista nossos péssimos índices em educação), é abonar o “jeitinho brasileiro” (não só no "tapar buracos", mas dando brechas para que as cotas sejam burláveis por pessoas que não as necessitam), é deixar de lado preceitos fundantes da nossa CF/88 como: Art. 4°, IX; Art. 5°,  e o mais importante, o Art. 19°, em seu inciso III: “criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”, além de não fazer muito sentido, em um país tremendamente miscigenado e que, sem parcimônia ou medo de errar, 99% da população é descendente de negros, índios e europeus, criar distinções com bases racialistas.  Há inúmeras vertentes e analises sobre o sistema de cotas raciais, uma delas pode ser entendida como “conservadora”, que é justamente manter o negro em condição subalterna, daquele que necessita de muletas, já que o Estado, em sua pífia atuação conseguiu apenas vislumbrar “cotas” e nenhuma mudança efetiva.  Ainda paira sobre nós, negros, a sombra de incapacitado. A outra, diz ser emancipatória, mas faz coro a primeira.

As críticas as cotas são muitas, desde seu adimplemento ineficiente (pois não acabaria com as desigualdades tão gritantes apenas com um diploma), bem como sua ação meramente paliativa, não indo com profundidade nas questões, como a carga tributária altíssima que pune os mais pobres e negros (mostras de um Estado inchado e custoso não significa “bem estar social”), como também por não haver critérios objetivos que possa estabelecer quem comporia os integrantes das cotas raciais. Ou seriamos obrigados a criar “tribunais de raça” ou “de sofrimento”, para avaliar quem sofreu mais ou menos e quem é “negro o suficiente” para o usufruto. Além do mais, se o peso para tal, forem os sofrimentos de diversas etnias, poderíamos ai incluir tantos outros povos perseguidos e mortos em outros tempos. Tampouco o progresso não pode ser alcançado por meio de líderes raciais ou étnicos, e pode ter efeito em muitas vezes reverso, ao não atender os reais necessitados, que são os mais pobres, como avalia Thomas Sowell, renomado economista norte-americano e negro, estudou a questão das cotas nos EUA, na Índia e na África. Sua obra Ação afirmativa pelo mundo: Um estudo empírico (2004) revela que as discrepâncias que as cotas queriam diminuir foram não só mantidas, mas ampliadas. Em todos os lugares em que implementou-se a política, houve um aumento significativo dos conflitos entre os grupos beneficiados e os não beneficiados.

É claro, e certo, que Boaventura também deixa espaço para refletirmos sobre as cotas no âmbito de “testes”, é o que exprime como “Estado experimental”, uma dada experimentação institucional, em que o novo desenho institucional do Estado exige combates por configurações alternativas. Sendo o mais recente dos movimentos sociais, o Estado acarreta consigo uma grande transformação do direito estatal. E mais certo ainda, é pensar nos ditames de "igualdade" x "justiça", como sempre lembrado por Aristóteles: "Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade."

Se caminharmos para a diferenciação, além de trazer à tona as teorias de raça (ou racialistas), de que não pertencemos a uma só raça, a raça humana, o fato não colabora para uma cultura de progresso que atinja todos, que pode levar a uma visão particularista, do qual também trata Boaventura. Muito em breve estaremos fadados a selecionar não só vagas em universidades, mas também, assentos nos ônibus, lugares de lazer e, pasme, talvez condomínios exclusivos. Mas isso já foi testado, especificamente pelo Estado norte-americano, com leis de Jim Crow. 
Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem;
Lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize.

Victor Hugo Xavier, 1° Direito - Noturno. 

Negra é a mão levantada dentro da universidade!

As cotas raciais, implantadas com pioneirismo pela UNB, em 2006, sofreram e ainda sofrem forte resistência dentro da sociedade. Prova disso é a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) instigada pelo DEM contra a política de reserva de vagas da UNB. Os argumentos do partido giravam em torno do princípio da isonomia, meritocracia e de que as cotas não eram nada mais do que uma forma de discriminação. O STF negou o pedido do partido, legitimando as cotas raciais que iria se espalhar rapidamente por várias universidades públicas. A decisão do Supremo Tribunal Federal é a consagração da visão de Boaventura de enxergar o Direito como um possível instrumento de emancipação social: O mesmo direito serviu de argumentação favorável e contraria à política de cotas raciais.
Em tempos de crise nas finanças estatais, um argumento contra a política de cotas é o financeiro. Isso porque os alunos que entram nas universidades por cotas, em sua maioria, necessitam de auxílio permanência, devido à condição social que o mesmo se encontra. A Legalidade Hegemônica, de Boaventura, busca, nesse caso, o equilíbrio econômico da instituição,. Por outro lado, na quando se fala em universidades, berço do conhecimento, do desenvolvimento intelectual e da produção de material científico, minimizar o acesso de negros significa barrar a visão e contribuição de um grupo social que é, claramente, marginalizado em diversas situações. Nesse caso, a Legalidade Cosmopolita Contra-hegemônico deve ser invocada para que possamos, ao mesmo tempo que acolhemos os negros dentro das universidades, equilibremos as contas públicas. Pensar Boaventura é superar um direito minimalista, que é funcional à racionalidade econômica. Devemos, portanto, abandonar a estrita racionalidade weberiana, onde, nesse caso, só se leva em conta a questão econômica.
Argumentar que negros desenvolveriam trabalhos com uma visão diferente das de outros grupos pode parecer uma espécie de Fascismo Social, já que estou monopolizando uma visão de mundo a uma determinada classe de pessoas. Respondo que não. A Universidade, principalmente a pública, dá ao seu aluno a possibilidade de explorar, por meio de pesquisas, eventos, palestras, cursos, etc, suas potencialidades e desejos. É evidente que um grupo que sofre pressões específicas, como é o caso dos negros, por sua própria vivência, desenvolverá dentro das universidades linhas de conhecimento também específicas. Inclui-los é, então, o desenvolvimento dentro das academias de uma visão diversa da hegemônica.
Dentro da Sociedade Civil Intima, encontramos grupos sociais caracterizados pela hiper-inclusão. Esses grupos encontram-se mais incluídos às possibilidades de mercado, estudo e trabalho do que qualquer política pública seja capaz de promover para grupos marginalizados. Dentro das universidades não é diferente: existem setores da sociedade que tem uma maior facilidade para entrar no meio acadêmico já que, por sua melhor condição financeira, foi viável o pagamento de escolas particulares muito melhores que escolas públicas. É evidente que o negro, hoje, é o esteriótipo da falta de possibilidade de estudo. Não é difícil constatar essa afirmação, basta olharmos para cadeias e favelas. Nesses locais, encontraremos a soma de 2 fatores: baixa escolarização e intensa presença de pessoas negras. Fatos esses, consequência do que podemos chamar de uma luta de classes onde os negros estiveram, durante séculos, subjulgados e marginalizados como classe mais fraca. Dessa forma, o argumento de responsabilização do indivíduo cai por terra, já que não é só a vontade do ser que o torna capacitado para enfrentar vestibulares difíceis e cansativos, mas a somatória de diversos fatores que são privilégios, garantidos por uma questão histórica, de determinados grupos sociais.  Pensar em responsabilização do indivíduo é se valer de uma fascismo temporal do hoje que ignora os acontecimentos do pretérito.

Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza”
(A mão da Limpeza – Gilberto Gil)

Dessa forma, ao chocarmos a questão das cotas raciais com as ideias de Boaventura de Sousa Santos chegamos à síntese de uma necessidade não só social de inclusão, mas de uma elevação da diversidade das produções acadêmicas. Dessa forma, não são só o grupo de negros que encontra-se marginalizados que ganha espaço dentro das plataformas de destaque da sociedade, mas o próprio corpo social recebe uma diversificação da produção cientifica. A tentativa do negro de se incluir dentro do contra social enfrenta a emergência de um conservadorismo que não aceita, de forma alguma, que o Direito Hegemônico sirva como ferramenta para que, por meio do choque da regulação social e da emancipação social, sintetize uma garantia de bem-estar no Estado de Direito. Cabe a nós, academicistas, detentores do conhecimento, usarmos o mesmo para reverter a lógica hegemônica e utilizar a tal regulação social como mecanismo de emancipação social.














Guilherme Araujo Morelli Costa - 1°Ano Direito Noturno