quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

As limitações do campo e do habitus



Pierre Bourdieu, em sua obra “O Poder Simbólico”, trabalha o conceito de que a sociedade capitalista possui, de sua própria natureza, um rol de “campos”, que consistem em espaços de lutas simbólicas, dentro dos quais há enfrentamentos e competições, sendo que cada campo teria certa quantidade de autonomia. Exemplifica o autor que há o campo jurídico, o científico, cultural e o político, sendo que cada um deles possuiria o que Bourdieu chama de habitus – estes corresponderiam a padrões de conduta que incorporam-se ao indivíduo que faz parte de grupo social específico. Desta maneira, um campo poderia ser identificado por seu habitus.
Bourdieu realiza, então, uma análise crítica focada no campo do direito. Tal campo estaria repleto de problemas relacionados mormente a imposições dos grupos dominantes da sociedade, que utilizam de seu poder e influência para dificultar transformações realizadas no direito. Com efeito, o autor chama este fenômeno de instrumentalismo, que, portanto, nada mais é que o uso pleno do direito em prol dos grupos dominantes. Ademais, aponta-se também outro fenômeno, chamado de formalismo: este faz com que o direito seja analisado como força autônoma, alheia às pressões sociais e às demais áreas – ou campos. As impressões trazidas por uma visão formalista, portanto, aliadas ao instrumentalismo, mitigam ainda mais a possibilidade de modificações efetivas.
Além disso, o sociólogo versa sobre a concepção de “espaço dos possíveis”. Nesta, afirma que o campo do direito é caracterizado pela constante concorrência entre agentes competentes para gerar soluções jurídicas. Para Bourdieu, esse elemento causaria, como os supramencionados, entraves para o uso do direito e para resolver, efetivamente, problemas sociais pelos meios jurídicos.
Com tal panorama geral sobre as ideias de Bourdieu, é possível estabelecer-se relação entre estas e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, que autorizou a interrupção de gestação com feto anencéfalo. Para chegar à tal decisão e justifica-la, fundamentaram-se os Ministros do STF no princípio basilar de laicidade do Estado, bem como no fato de que o feto anencéfalo não possui qualquer expectativa de vida uma vez realizado o parto – ou seja, não se pode haver crime contra a vida em abortos nesta particular situação. Ademais, nota-se também um posicionamento do Tribunal em defesa da mulher, no que tange à proteção aos riscos, mormente psicológicos, que podem decorrer de uma gestação nesta situação. Em tal égide, são emblemáticas as palavras da Ministra Carmén Lúcia: “considerando que o feto não tem viabilidade fora do útero, deve-se proteger a mulher, que fica traumatizada com o insucesso da gestação”.
De fato, a ideia de formalismo, descrita por Bourdieu, representaria um empecilho significativo na solução desta questão da forma que foi realizada: o formalista considera o direito como um campo alheio aos outros, e notavelmente a decisão do STF não foi sedimentada exclusivamente no âmbito jurídico, mas utilizou-se também de insumos do campo da medicina e da psicologia, que permitiram a analisa extensiva do caso concreto.
A decisão do STF revela-se justa e humana, ao colocar em primeiro plano a mulher e não o feto sem quaisquer expectativas de sobrevida. Nota-se, então, que o pensamento da magistratura não deve nascer exclusivamente do direito, mas sim pautar-se em quantas distintas áreas forem necessárias, para que se possa almejar o bem comum – não se deve, portanto, manter-se atado aos habitus de seu campo.
Ademais, o julgamento também se relaciona com a concepção de instrumentalismo: as classes dominantes na sociedade brasileira tem caráter conservador, e, em termos de influência, é também cabível ressaltar a força das bancadas religiosas na esfera política e civil. De fato, o instrumentalismo do direito faria com que a decisão tomada fosse diametralmente oposta à que ocorreu, pois por opção das classes dominantes, seria vetado o aborto de anencéfalos. Mostra-se, novamente, a função do judiciário de utilizar o direito não como mero instrumento das classes dominantes, mas como meio de emancipação social, como preconizado, por exemplo, por Boaventura de Sousa Santos. 

Gabriel Cândido Vendrasco - Diurno

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