quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

       A anencefalia consiste na ausência parcial ou total do encéfalo e da calota craniana, devido a uma má formação do tubo neural nos primeiros momentos de formação embrionária. Estima-se que 50% das mortes em caso de anencefalia ocorram ainda na vida intrauterina, e dentre os que nascem com vida, 99% falece logo após o parto. O restante sobrevive por pouco tempo, mas realizando apenas movimento involuntários controlados pelo tronco cerebral, como respirar e engolir.
    Em 2004, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54 foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), com o objetivo de declarar a inconstitucionalidade de qualquer interpretação que considerasse a interrupção da gravidez em casos de anencefalia um crime, conforme as condutas tipificadas nos arts. 124 e 126 do Código Penal brasileiro. Já em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente o pedido, considerando que a criminalização da interrupção terapêutica da gravidez nestes casos feria princípios fundamentais da Constituição, como o direito à saúde, a dignidade da pessoa humana e a liberdade e autonomia da vontade.
      Esta decisão teve como resultado um debate marcado pelos conflitos ideológicos entre grupos que visam o direito de escolha da mulher gestante e defensores da “vida”. A discussão abrangeu questões como a laicidade do Estado, o direito à vida, a saúde física e psíquica, o direito de escolha e o direito sobre o próprio corpo.

“Deuses e césares tem espaços apartados. O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro” - Marco Aurélio Mello

    De acordo com a teoria do sociólogo francês Pierre Bourdieu, evidencia-se a historicização da norma pelos operadores do direito que votaram favoravelmente, que agiram “adaptando as fontes a circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidade inéditas (...)”. Verifica-se, assim, que a decisão do STF vai contra o que Bourdieu chama de instrumentalismo (concepção do Direito como ferramenta de defesa da opinião e dos valores da classe dominante), uma vez que diverge das convicções de um país majoritariamente católico, que enxerga o “aborto” como crime.
     A tese de Bourdieu de que o Direito deve evitar o formalismo (entendimento do Direito como força autônoma diante das pressões sociais) também se confirma na ação analisada. Se por um lado, a parte que considera crime a interrupção da gravidez em casos de anencefalia se deixa influenciar pela moral religiosa e, com isso, impede medidas progressistas, por outro, o veredito do STF é influenciado pelo crescente debate acerca dos direitos e das reivindicações sociais como, neste caso, a luta feminista.
   Observa-se, ainda, a hermenêutica exercida pelos operadores do Direito, que colocado “(...)diretamente perante a gestão dos conflitos e uma procura jurídica incessantemente renovada, tendem a assegurar a função de adaptação ao real num sistema que, entregue só a professores, correria o risco de se fechar na rigidez de um rigorismo racional”.


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