terça-feira, 22 de novembro de 2016

Judicialização e Demandas Sociais

    Sabe-se que as instituições políticas brasileiras, notadamente os Poderes Legislativo e Executivo, desde sua gênese, não cumprem seus papeis de representantes da vontade do povo e de defesa dos direitos previstos nas legislações, ou o fazem de forma insuficiente, lenta e atrasada frente as demandas sociais. Por vezes, até apresentam um entrave ao avanço de questões progressistas e que beneficiem grupos minoritários da sociedade. Um exemplo claro disso é a presença da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional, uma vez que esta defende pensamentos e medidas que ferem tanto os direitos humanos como preceitos constitucionais, impedindo, ainda, o debate de temáticas como o aborto, a igualdade de gêneros, os direitos LGBT e a laicidade do Estado.
    Esta crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade presente na esfera do Legislativo provoca, então, a expansão da atuação do Judiciário, num processo que Barroso denomina “judicialização”. Este processo pode ser definido como “algumas questões de larga repercussão política ou social [que] estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo”. No entanto, quando a atuação do Judiciário ultrapassa a simples circunstância decorrente do modelo constitucional adotado e passa a ser um exercício deliberado da vontade política, representando, segundo Barroso, “(...) a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição”, essa ação passa a ser reconhecida como Ativismo Judicial.
    Em meio à mencionada crise de representatividade e ao embate entre estes dois modos de atuação do judiciário, encontra-se o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277.
   Em fevereiro de 2008, o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, apresentou ao Supremo Tribunal Federal a ADPF 123, que requeria a aplicação, por analogia, do art. 1.732 da Constituição Federal às uniões homoafetivas, com base na interpretação dos preceitos constitucionais. Já em 2009, a Procuradoria Geral da República propôs a ADPF 178, recebida pelo Presidente do STF, Gilmar Mendes, como ADI 4277, que tinha como objetivo o “(...) obrigatório reconhecimento no Brasil da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, (...) e que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendam-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo”.
    O julgamento das duas ações ocorreu conjuntamente, e houve o reconhecimento da união estável entre casais homoafetivos, estendendo a estas relações os mesmos direitos vislumbrados pelos casais heteronormativos. No entanto, questiona-se a legitimidade da decisão, uma vez que pode ser interpretada tanto como simples judicialização quanto como ativismo jurídico.
    O primeiro argumento refere-se aos riscos que a atuação do Judiciário oferece para a legitimidade democrática, uma vez que os membros desse poder não são eleitos pelo povo. Portanto, não teriam a mesma legitimidade daqueles representantes eleitos democraticamente, e os temas deliberados não seriam debatidos dentro da esfera do poder mais representativo e democrático (Legislativo), avançando, portanto, paralelamente à sociedade.
    No entanto, aponta-se dois papéis fundamentais da Constituição Federal: o de estabelecer as regras do jogo democrático e o de proteger direitos e valores fundamentais, mesmo que contrariem o princípio majoritário. Portanto, o Poder Judiciário, como Guardião máximo da Constituição, teria direito de agir no julgamento supracitado.
    Argumenta-se, também, que cabe ao legislativo criar o Direito positivo e ao Judiciário a aplicação deste em casos de conflitos. Cada Poder deve cumprir sua própria função, para que exerçam um controle recíproco e para garantir o pleno funcionamento das instituições, lógica que seria quebrada pela expansão do Judiciário. Ressalta-se, porém, que o Judiciário não deve negligenciar a população que clama pela resolução de problemas frente à inércia do Legislativo.
    Afirma-se, ainda, que o debate das decisões que envolvam grande apelo social pelos órgãos do Poder Judiciário seria uma solução simplista e imediata para um problema estrutural. Por exemplo, mesmo com a ADPF 132 e a ADI 4277, somente em 2013 o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução que obriga os cartórios a celebrarem união estável de casais do mesmo sexo. Todavia, destaca-se que a questão das uniões homoafetivas exige soluções imediatas uma vez que, além de ferir princípios como de igualdade e liberdade, ainda envolve questões essenciais como herança, previdência social, imposto de renda, plano de saúde, licença no caso da morte do companheiro e adoção do sobrenome deste. Exemplo disso é um caso que o ocorreu na Austrália, em que o governo se recusou a reconhecer o casamento de um homem britânico cujo marido faleceu durante viagem de lua de mel do casal. Como consequência, todas as decisões tiveram que ser tomadas pela família do finado, e seu companheiro não teve seus direitos, como a herança, respeitados.
    Assim, conclui-se que a ação do Poder Judiciário no julgamento tratado aqui foi correta e representou papel essencial na conquista e concretização de direitos de minorias sociais. No entanto, este tipo de ação não exclui o papel legítimo do legislador, que deve atuar com racionalidade e justiça para assegurar direitos fundamentais à população. Como verifica-se que este papel não é cumprido atualmente, ressalta-se, ainda, a necessidade de reforma política para sanar a crise de representatividade, funcionalidade e legitimidade do Poder Legislativo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário