domingo, 20 de novembro de 2016

Uma vitória, ainda que tímida, ao afeto

A partir do pós- guerra tornou-se comum nos países ocidentais o fenômeno da judicialização, isto é, questões de larga repercussão política e social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário e não pelas instâncias tradicionais: executivo e legislativo. Um exemplo deste fenômeno no contexto brasileiro é a aprovação, em 2011, da ADPF 132 e da ADI 4277 pelo STF. Observando que a Constituição tem por finalidade proteger os direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união homoafetiva estável como entidade familiar. Tal deliberação amplia, pois, a compreensão do conceito de família- em respeito a pluralidade democrática e a dignidade da pessoa humana- e expande aos cônjuges homoafetivos direitos que há décadas são exclusivos às uniões heteroafetivas, como herança por morte do parceiro, pensão alimentícia e comunhão parcial de bens. É bastante provável que se fossemos esperar este avanço vir das esferas legislativas e executivas, ainda vigoraria a concepção restrita, equivocada, reacionária e preconceituosa de família e milhares de homossexuais estariam ainda mais à margem do âmbito jurídico e social.  


Se, por um lado, esse fenômeno da judicialização traz avanços, respostas a algumas das demandas das minorias. Por outro, evidência a urgência da reforma política, pois se o judiciário está sendo mais acionado do que se poderia imaginar significa que há uma disfuncionalidade política, uma morosidade dos demais poderes, causadas- de acordo com Barroso (p. 9)- por ‘’ uma persistente crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo’’.  Essa retração do poder legislativo leva também ao ‘’ativismo judicial’’, caracterizado pela a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. A idéia de ativismo judicial está associada, portanto, a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.
De acordo com a visão de alguns aplicadores do Direito, na decisão pela união homoafetiva estável como instituto jurídico, o STF usou do ativismo judicial no sentido pejorativo do termo, quando deveria ter agido pela auto-contenção judicial, ou seja, não ter invadido às competências legislativas proferindo decisões que não estão explícitas nos textos da lei. Concordar com tal concepção, todavia, é ter uma visão distorcida do papel do jurista e da realidade dos homossexuais na sociedade brasileira. Diante das lacunas da lei e da urgência do caso concreto o juiz deve buscar a solução que seja mais correta, mais justa, à luz da observância dos direitos fundamentais, ainda que para tal ele tenha que agir de maneira contramajoritária.  
Ora, foi exatamente o que fez o STF ao aprovar a ADPF 132 e da ADI 4277. Não se trata do ato de legislar, a judicialização, neste caso, são decorrentes do nosso modelo constitucional abrangente e não de um exercício deliberado de vontade política. Ademais, a extensão da concepção de família e o reconhecimento da união homoafetiva estavam implícitos na constituição, foram retirados de valores fundamentais como: a igualdade perante a lei, a liberdade de expressão, o combate ao preconceito, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo democrático. O STF tornou ser o dever ser, deu materialidade ao plano formal ao interpretar e ampliar o texto constitucional a fim de atender uma demanda social urgente e implícita na Magna Carta. O Direito foi nesse caso e considerando as ideias do Boaventura de Sousa Santos, um instrumento emancipatório, uma vez que incluiu- ainda que de forma tímida- uma parcela social que há séculos é violentada e marginalizada pela discriminação, pela distorção dos princípios religiosos e pelo ódio as diferenças.
Não se trata de desconsiderar que o ativismo judicial no seu sentido amplo, de interferência as demais esferas, deve ser controlado e eventual, já que em doses excessivas há o risco de se afligir a já frágil democracia brasileira. E sim de ressaltar que há circunstâncias em que a ideia de ativismo judicial é aplicada de forma equivocada, como fizeram alguns aplicadores do direito ao julgar a decisão do STF pela extensão dos direitos aos casais homossexuais. No caso da união homoafetiva apenas aparentemente há a opção pela auto- contenção judicial e outra possibilidade de decisão. Caso o STF negasse o direito estaria agindo respaldado pela paixão, pela influência de uma maioria homofóbica e não pela razão, pela observância de cláusulas pétreas e de princípios básicos da democracia. A aprovação da ADPF 132 e da ADI 4277 é um pequeno passo para a construção de uma sociedade que aprecie e respeite a pluralidade, onde pessoas não sejam impedidas de amar e demostrar seus sentimentos e onde histórias, como a de Saul e Raul narrada por Caio Fernando, não deixem de florescer por medo da repressão social. 


‘’Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra (..)
 Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece, porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las(...) Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos’’

Caio Fernando Abreu, aqueles dois. 
Conto completo: http://contobrasileiro.com.br/aqueles-dois-historia-de-aparente-mediocridade-e-repressao-conto-de-caio-fernando-abreu/

Juliana Inácio- Direito noturno

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