terça-feira, 4 de outubro de 2016

Primavera

Eu tenho uma casa.
Um piso, um teto, tinta nas paredes
Presentes no Natal.
Eu tenho um quarto.
Nasci com essa fração enquanto crianças mais novas que eu recebiam 1/10, 1/20, 1/100 de uma mãe, de uma casa, de uma família.
Eu tenho uma janela
E dela, eu vejo o mundo de cima
E mais amplo do que muita gente vai ver em toda a sua vida.
E eu tenho vizinhos
E meus vizinhos tem um girassol.
Posso vê-lo pela janela do meu quarto
Quase passando por cima do muro
Buscando a iluminação
(É uma planta solitária)
Um dia, o girassol pulou o muro
E se deparou com o meu quintal:
Um sem-fim de terra fofa
Sem um propósito final
(Piscina ou quarto de hóspedes? Meus pais não conseguiam decidir e, com o passar do tempo, ele só ficou ali)
Você já viu um girassol?
Seu centro tem mil sementes
Que se viram pro Sol junto a ele
E, um belo dia, se viraram pro meu jardim - acho que ele as despejou para fazerem companhia a mim
De fato, depois de alguns dias
Da janela do meu quarto
Pude ver vários brotinhos
E, apresar da minha empolgação, parecia ser a única que lhes dava atenção
Certo tempo se passou
E meus vizinhos de quintal
Me vieram com um presente
(Que eu ganhava no Natal)
Num vasinho enfeitado com laço
Uma mudinha de girassol
- claro, eles não tinham como saber do seu intruso no meu quintal -
Agradeci fervorosamente
E também o fizeram meus pais
E o levei para meu parapeito
Mas minha mãe veio logo atrás
"Insustentável!" ela bradava
E eu tive que concordar
"Insustentável", pensei. "Como um vaso tão pequeno pode ser o seu lar?"
E o levei para o jardim
Junto com as outras mudas
Agora perfeitamente visíveis
Embora eu parecesse ser a única a vê-las
E via-as crescendo fortes
E o silêncio me encorajou
Toda flor solitária que eu via
Se pequena, vinha comigo
Se não, vinham seus frutos, suas folhas ou sementes
Trazia a próxima geração ao jardim
Que crescia a cada dia
(Embora, por muito tempo, parecesse que só eu via)
Oito anos mais tarde
Não dava pra ignora-lo
Amasse-o ou odiasse-o, ele cresceu de tal maneira
Que a vizinhança inteira
Tinha opinião formada
Para alguns, era orgulho
Para outros, incomodo
("Muitos insetos", eles diziam
"Mas gosto de flores, sim" acrescentavam)
Como foi para meus pais
Que protestaram levemente
E logo foram dissuadidos
Não valia a batalha tardia, concluíram
E se deram por vencidos
Ou assim eu deduzira
Um dia, chegando em casa
Sem qualquer preparação
Me deparo com uma escavadeira
Abrindo caminho para os fundos
Para as flores
Para o meu mundo
E, sem hesitação
Arrancou pela raiz
Anos de dedicação
Minha mãe veio ao meu encontro
"O bairro achou melhor", e parecia constrangida
"Por que não me avisaram?"
"Achamos que entenderia
Não é de todo ruim", ela tenta me animar
"Estão tirando de forma a plantar em outro lugar"
"Onde?" perguntei
"Isso ainda não sei"
Me abaixei para uma pétala
E, olhando para o jardim
De anos de construção
Ser destruído sem dó
Um sorriso me surgiu
"É de todo ruim
Vocês a arrancaram sem dó"
Silêncio
"Mas nós florescemos em qualquer lugar"


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