sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A preservação das correntes

''O pássaro é livre na prisão do ar
O espírito é livre na prisão do corpo''
Drummond

Desde os sete anos XXX se sente desconfortável com o seu sexo biológico e com o papel de gênero vinculado ao masculino. A partir dos 15 iniciou o uso de hormônios para se adequar ao feminino, conforme foi adquirindo os traços de mulher passou a ter uma vida marcada pela violência e pelo preconceito, dada a aversão social a transgeneridade- a qual é vista como uma aberração pela sociedade e como patologia pela ciência. Há anos ela se submete a acompanhamentos sócio-psíquicos e todos os laudos dos profissionais da saúde apontam que XXX está certa quanto à cirurgia de trangenitalização e que não suportará por muito tempo manter-se em um corpo que não a pertence. Frente a esse quadro marcado por sofrimentos, angustias e pelo risco de suicídio, o juiz de primeira instância concede a tutela antecipada aos seguintes pedidos pleiteados pela transexual: a cirurgia de mudança de sexo custeada pelo S.U.S, bem como a alteração do registro civil e do gênero do masculino para o feminino.   
A decisão pela tutela antecipada se justifica, pois se trata de uma situação urgente, cuja falta de resposta ou a demora desta pode resultar no suicídio da transexual. O juiz fundamentou sua sentença, basicamente, na ideia de direitos implicitamente positivados. Apesar de o direito fundamental a identidade trans não estar posto de forma expressa, ele está implícito uma vez que os nossos princípios constitucionais alicerçam-se na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana e no direito fundamental à vida. Há também uma jurisprudência favorável, principalmente no que tange a questão da mudança de gênero e prenome, ademais, deve-se considerar os princípios das legislações internacionais das quais somos signatários, como a declaração universal de direitos humanos. Soma-se, ainda, o art. 13 do CC que permite a disposição do próprio corpo por exigência médica e a autorização do Conselho Federal de Medicina à realização da cirurgia de mudança de sexo, desde que constatado o quadro de transexualismo.
Diante da decisão judicial fica evidente a afirmativa de Weber de que não há direito totalmente formal (direito puro, refere-se ao ordenamento positivado) ou puramente material (aquele que leva em consideração fatores extrajurídicos), pois ambos se interpenetram. A sentença de primeira instância pautou-se nas normas ‘’puras’’ como o art. 13, a decisão do CFM e, ao preencher lacunas existentes (o direito a identidade trans não é explícito), o juiz cumpre o que manda as leis de introdução às normas do direito brasileiro nos casos em que a lei é  omissa. Além disso, demonstra a racionalização jurídica descrita por Weber, através da qual: ‘’para toda constelação de fatos concreta deva ser possível encontrar, com os meios da lógica jurídica, uma decisão a partir das vigentes disposições jurídicas abstratas’’.
Ao preencher as lacunas, o juiz interpretou o sistema jurídico para além da forma, extraindo mais um direito fundamental: a identidade trans, isto é, a decisão de primeira instância considerou a leitura do ordenamento como um todo, além do histórico de sofrimento individual que ultrapassa o subjetivo, pois a estigmatização da transexual está vinculada a uma questão social. Ademais, a sentença do julgado racionaliza e transforma o direito material à identidade trans em direito formal jurisprudencial. E, assim como a sociologia weberiana preza pela autonomia do individuo e pelo poder da ação social, a decisão do juiz caminhou no sentido de valorizar o sujeito e o direito fundamental a liberdade individual de dispor do próprio corpo e da própria identidade.
Essa racionalização é, em Weber, uma característica do Estado de Direito Moderno e se estende ao jurídico, as finanças, a ciência e o próprio homem, quando este passa a seguir uma série de condutas metódicas e calculadas que permitem prever o comportamento humano e homogeneizá-lo. A manutenção na sociedade capitalista dos papeis tradicionais da divisão binária gênero é um exemplo dessa racionalização do homem e de controle metódico e calculado sobre os corpos. Assim, ao nascer menina ou menino há uma socialização que torna uma série de condutas e funções do individuo úteis e previsíveis. A pessoa trans ao não se adequar as expectativas, ofende o status quo e será estigmatizada e pressionada à  pertencer a uma das categorias de gênero. É importante observar também que a trajetória da parte requerente (desde necessidade de patologização, os longos tratamentos e o próprio processo judiciário) demonstra outra característica da modernidade elencada por Weber: a burocracia.
Apesar da argumentação jurídica racional, a sentença foi negada em segunda instância. Isto é, no final o direito foi usado de acordo com as crenças e interesses da moral conservadora dominante, confirmado a tese de Weber de que o desenvolvimento social moderno debilitou, em grande medida, o racionalismo jurídico formal, pois o direito cerca-se da irracionalidade ao responder aos interesses de um grupo político hegemônico e autoritário. Para além da questão psicológica, fica evidente que o sistema de gênero é o que Durkheim chama de ''fato social'', dada a exterioridade e coercitividade. A divisão em feminino e masculino já existia antes de XXX nascer e desde a mais tenra idade todo o ciclo social a orientou a seguir a cartilha do gênero compatível com o sexo biológico feminino. Ao romper com isso, a coerção torna-se gritante, XXX busca se encaixar em um papel social, ainda que isso custe recorrer a cirurgias e a hormônios. E nesse paradigma de coerção interna e externa as pessoas transexuais têm- inevitavelmente- uma vida marcada pela dor e violência, pelo derramamento de sangue na cirurgia, na agressão social e, em muitos casos, no suicídio. 
Juliana Inácio- Direito (noturno) 


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