terça-feira, 4 de outubro de 2016

Nas malocas da cidade

Se o senhor não tá lembrado
Dá licença de conta

            No início do ano de 2004, iniciou-se a ocupação do terreno que mais tarde seria conhecido como Pinheirinho; neste episódio inicial, cerca de 300 famílias estabeleceram residência no lote abandonado pertencente à massa falida da empresa Selecta, propriedade do empresário Naji Nahas, conhecido como o responsável pela quebra da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro em 1989.

 Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca

Ao longo de oito anos, em meio a disputas jurídicas, a comunidade consolidava-se e ganhava vida; estima-se que, em seu ápice, o bairro abrigava entre 6 e 9 mil moradores, em uma área que contava com escolas, igrejas, estabelecimentos comerciais e associação de moradores.

Mas um dia, nós nem pode se alembrá
Veio os homis c'as ferramentas
O dono mandô derrubá

            No entanto, a questão da propriedade da terra e a ameaça de desocupação assombravam o cotidiano do bairro, e esta ameaça concretizou-se quando a Juíza Márcia Loureiro ordenou a reintegração de posse através de uma liminar. Esta atitude condiz com uma perspectiva hegeliana acerca do Direito, em que este é visto como a vontade racional do homem, instrumento de auxílio e reflexo da evolução humana e pressuposto para a felicidade. Nas próprias palavras de Hegel, “o sistema do direito é o império da liberdade realizada”.

Mato Grosso quis gritá
Mas em cima eu falei:
Os homis tá cá razão
Nós arranja outro lugar

No entanto, a própria decisão da juíza já explicita que esta liberdade está intimamente ligada com a propriedade. O direito à propriedade de um especulador imobiliário e o direito à moradia, necessário à sobrevivência e dignidade da pessoa humana, são postos em patamares iguais; no entanto, o primeiro acaba por sobressair-se em relação ao outro.
            Ao igualar estes dois direitos no processo da tomada de decisão, a juíza ainda supõe, como supôs Hegel em sua teoria, que o Direito supera as particularidades e privilégios. Porém, assim como aponta Marx em sua crítica, esta noção é puramente ilusória e pertencente ao plano abstrato. O Direito reflete puramente as relações materiais e é instrumento de dominação da classe proprietária, que o utilizará para favorecer-se.
            Se o caso fosse julgado através do pensamento de Marx, a justiça deveria, então, considerar todo o processo histórico que levou à situação do déficit habitacional e da especulação imobiliária; considerar a marginalidade imposta a esse grupo de indivíduos sem teto, tanto em relação à participação na vida social, quanto em relação à construção do sistema de lei e do acesso ao Direito em si.
            Dessa forma, Pinheirinho é perfeita ilustração da visão marxista sobre o sistema. Uma justiça que desdobra-se e utiliza de artimanhas legais para defender o patrimônio de um proprietário acaba por ordenar a expulsão de milhares de pessoas, em uma ação violenta que deixou mortos, feridos e desabrigados. Como bem ilustra Gilberto Gil, “Nos barracos da cidade/ Ninguém mais tem ilusão/ No poder da autoridade/ De tomar a decisão/ E o poder da autoridade, se pode, não faz questão/ (...) O governador promete/ Mas o sistema diz não/ Os lucros são muito grandes/ E ninguém quer abrir mão/ Mesmo uma pequena parte/ Já seria a solução/ Mas a usura dessa gente/ Já virou um aleijão”.


Lisa Abdala Garcia - 1º Ano Direito (Noturno)

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