domingo, 17 de abril de 2016

Lacunas Mascaradas

Entediado e saturado já pelas longas quatro horas de palestra corridas, estava a ponto de deixar minha cadeira vaga para uma daquelas tantas pessoas em pé ao meu redor. O palestrante tocava fundo em assuntos cotidianos que aparentemente eram inofensivos porém após certo tempo de reflexão, se tornavam importantes. Percebi uma certa tendência comtiana em seu discurso, mas ainda não estava convicto disso. Palestra dinâmica que era, a qualquer momento poderia ser chamado para contribuir com a discussão. Parte de mim pensava nos afazeres do trabalho pendentes que teriam de ser resolvidos quando eu chegasse em casa, e outra parte se relutava em pensar na possibilidade de ser convocado para participar do debate. Porém, como bem sabemos, quando menos se quer algo, maior a chance disso acontecer. E eu não fui exceção.  
- Você, de camisa escura. Me diga: qual sua contribuição para a sociedade no que diz respeito ao seu ofício?
Eu não acreditava. 200 cabeças me encarando, esperando uma resposta satisfatória. Pense! E pense rápido! 
- Eu me considero importante pelo fato de ser útil para algo na sociedade.  
- E você sente-se honrado pelo seu trabalho? 
- De certa forma, sim - eu não sabia onde ele queria chegar. A resposta não era óbvia? 
- Isso! Muito bem. Esse é o pensamento que ideal para que a humanidade caminhe para frente. O trabalho enaltece o homem. É necessário para o desenvolvimento da sociedade e consequentemente para o bem estar desta.
Nesse momento, tive um insight certeiro. Como pode o trabalho ser um benefício para a sociedade sendo que este estimula cada vez mais o individualismo? O discurso dele se tornava contraditório a cada palavra emitida. Por impulso, levantei meu braço e esperei ele me atender. Falei, e falei sem impedimentos. 

- Mas senhor palestrante, como pode o senhor defender tal ponto de vista em pleno século XXI? O trabalho foi indubitavelmente o motor para a sociedade burguesa que se formava na época que essa corrente positivista foi desenvolvida, servia para justificar as novas atitudes da burguesia em sua fé no progresso retilíneo da humanidade. Porém, com o passar do tempo, é nítido que o trabalho estimula cada vez mais a competitividade, o individualismo, transformando os indivíduos cada vez mais em pessoas egoístas. Será mesmo que a sociedade é beneficiada por esse comportamento? O positivismo de Comte tão presente em seu discurso é contraditório nesse aspecto. Prega uma harmonia social porém super valorizando o trabalho. E, nesse paradoxo, é difícil vangloriar o trabalho, uma vez que ele acaba não levando em conta o bem estar coletivo. Qual é o bem estar que o senhor preza? O trabalho enaltece o homem em qual aspecto? Qual é o real significado pra você, senhor palestrante, de caminhar para frente?
Fez-se silêncio no anfiteatro. 


 


Nenhum comentário:

Postar um comentário