quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Bourdieu e a questão da anencefalia


Em 2004 a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde formalizou a ADPF 54/DF para demonstrar que a antecipação terapêutica do parto não consubstancia aborto. Seria, portanto, inequívoco, sujeitar os trabalhadores de saúde que atuem no procedimento da antecipação terapêutica do parto à ação penal pública. O pedido visa declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria enquadrada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, que criminalizam a ação de provocar do aborto em si ou consentir que outrem lhe provoque e provocar aborto com o consentimento da gestante, no entanto, não é criminalizado o aborto praticado por médico em dois casos: se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro.
O Direito tem certa autonomia e independência, mas ao mesmo tempo, está ligado a vários outros campos, como afirma Bourdieu, já que nesse caso também depende do laudo médico, ou seja, de questões médicas e psicológicas. Talvez o campo jurídico seja maior que os outros campos, mas ressalta-se que uma ciência influência a outra, e nenhuma é totalmente isolada, por isso a crítica à Kelsen. Para Bourdieu, o Direito está totalmente ligado as mudanças da sociedade. 
A expansão do Direito não faz aumentar o espaço dos possíveis, mas faz apenas a movimentação dentro desse espaço, já que não é do novo, apenas distende até onde o próprio Direito permite. O Direito não é estático, já que deve se mover e se adaptar à realidade; ele condiciona novas condutas, mas a partir da própria receptividade da sociedade, e não de suas condutas. Bourdieu também afirma a existência de uma ilusão de dependência do Direito em face das relações de forças externas, no entanto, o Direito não está hermeticamente fechado.
O espaço possível de Bourdieu, que possui um limite a hermenêutica no âmbito do campo jurídico, se alargou demais. Assim, quando o Código Penal foi produzido em 1940, não havia tecnologia para comprovar a anencefalia, por isso, cabe a gestante decidir se ela vai querer ou não abortar. Assim, o juiz opera a historicização da norma adaptando-a as fontes e as circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidades inéditas. A inovação é possível, no entanto, somente a hermenêutica muda, já que a fonte é a mesma.
Sobre a luta simbólica do campo jurídico da qual Bourdieu aborda, ela ocorre de forma dialética, entre as fontes do direito (doutrina e jurisprudência) que é interpretada (pelos juízes) influenciado na doutrina. Assim, sob a perspectiva do autor, os juízes adequam a norma a realidade da mulher grávida de feto anencéfalo. Bourdieu também aborda a temática da luta simbólica no campo jurídico entre os doutrinadores e os magistrados. Os doutrinadores, que realizam um trabalho puramente teórico, têm mais prestígio, mas na dinâmica social não é assim. Já os magistrados realizam atos de jurisprudência e também contribuem para a construção jurídica. A palavra final é do doutrinador, que põe em forma, ou seja, é o intérprete final em relação à forma.
Outra questão tratada por Bourdieu é o efeito simbólico, que pode ser observada na ADPF ao referir a alguém como doutor, havendo uma submissão das pessoas aos ministros por elas acharem que eles são mais capazes. Pode-se afirmar, portanto, que há sempre uma hierarquia presente na sociedade, no direito e nos campos. O direito tem um poder simbólico, ou seja, ele traça os contornos os quais circunscrevem a discussão. Assim, observa-se que apesar de ser levado a cabo pelos movimentos sociais, quem resolve a questão é o direito.
O veredicto, abordado por Bourdieu e encontrado na ADPF é resultado da luta simbólica no campo jurídico, e é um recurso técnico e social, que se vincula muito mais às atitudes éticas dos agentes do campo do que às normas puras do direito. Assim, na ADPF, o que dá legitimidade para a sentença não é que esta é dada pela vontade dos juízes, mas pela vontade da razão. A enunciação do veredicto pode significar novas criações, no entanto, elas devem se inscrever no âmbito dessas estruturas. Assim, a percepção do mundo social goza de relativa autonomia, todavia, se enquadra no âmbito de determinadas estruturas.
O campo jurídico retratado por Bourdieu é o espaço, que pode ser imaginário, concreto que constitui uma autonomia relativa com valores, códigos de linguagem, habitus (disposições incorporadas no individuo a partir de sua presença em seu determinado campo e mantém o direito no espaço dos possíveis) específicos, ou seja, elementos inerentes a vida. Sua dinâmica pressupõe a suposição de universalidade, a procura social e a lógica própria do trabalho jurídico. O capital simbólico são recursos que você tem, ou pode ter, e que em uma dinâmica social de concorrência permanente, ou seja, é um elemento de distinção. Na ADPF estudada pode-se levantar a questão: Quem tem mais capital simbólico para impor uma conduta? Observa-se a presença do ethos compartilhado quando não existe diversificação dos juristas e dos magistrados, implicando diretamente no favorecimento de que as questões sejam vistas de uma visão dominante. Nesse caso da ADPF, o ethos compartilhado seria a moral cristã, pois explica a expressão dos valores dominantes no âmbito do campo.

Imagem retirada de: http://www.gazetadopovo.com.br/ra/grande/Pub/GP/p3/2011/07/11/VidaCidadania/Imagens/ILUSTRA-Anencefalo.jpg

Amanda Barbieri Estancioni
1º ano - direito diurno

Aula 3.1 (30/12/2015)

Proatividade necessária

          Um processo muito discutido atualmente é o da Judicialização. Nele, assuntos de grande repercurssão política e social, antes nas mãos do Congresso Nacional ou do Executivo, acabam por ser decididos pelo poder Judiciário. É exercida através do ativismo judicial, em que consiste em uma extração máxima das potencialidades do texto constitucional.
          Tal processo , segundo Barroso, foi possível através da retomada das garantias dos Magistrados na Constituição de 1988, além do fato de o controle de constitucionalidade brasileiro ser um dos mais abrangentes do mundo. Quanto à isso, vemos um controle difuso, em que qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplica uma lei se a julgar inconstitucional.  
          A Judicialização, apesar de controversa, se faz necessária, uma vez que a falta de ação do Legislativo e Executivo quanto às necessidades da sociedade costuma ser frequente. Além disso, o poder Legislativo, em especial, passa por uma grande crise de legitimidade e funcionalidade, sendo esse um dos fatores do Judiciário ter se tornado o “muro das lamentações do mundo moderno” . O caso do Pinheirinhos, por exemplo, vemos que a juíza entende que não era obrigação do Judiciário fazer justiça social. Porém, de maneira mais proativa e um tanto quanto diferente de tal pensamento, temos o que ocorreu  em 2011: o STF reconheceu como legal a união de casais do mesmo sexo, enquanto o Código Civil de 2002 não concedia validade à esse tipo de casamento.  Foi através de um modo proativo de interpretar a Constituição, que o Judiciário tomou tal ação: o conceito de família é muito mais que a heterosexualidade, entra-se no campo subjetivo e entende-se que o amor deveria determinar tal conceito. Além disso, o número de casais homosexuais(demanda) já mostrava a necessidade de uma mudança.
Sofia de Almeida Antunes- 1 ano noturno

O Campo e a Ciência

      O Campo Jurídico, segundo Bourdieu, possui uma linguagem própria e um meio autônomo para funcionar. Também nele se encontra uma luta simbólica entre diversos grupos para se fazer criar a decisão jurídica. Tal decisão, todavia, pode ser aplicada até para questões que não são puramente jurídicas, com, a exemplo, o que é vida e o que não é.
      A questão do aborto de anencéfalos cobre tal concepção de forma bastante satisfatória. É uma questão biológica, e não jurídica, discutir o que é de fato vida, todavia, o direito, usando de uma decisão jurídica, tomou a si tal dever. Além disso, a discussão sobre o aborto em forma geral não foi discutida pois está fora do Espaço dos Possíveis.
      O Espaço dos Possíveis é, ao mesmo tempo, razão e moral, e cabe ao direito decidir se optará pela resposta moral ou pela resposta racional, mas apenas do que a sociedade está minimamente preparada para receber. O aborto descriminalizado - ou até mesmo liberalizado - não cabe dentro da sociedade, todavia, o aborto de anencéfalos pode ser, devido ao caráter racional do século XXI e de seus valores morais, discutido.
     Apesar de haver uma alegação sobre a laicidade do Estado, muitos grupos religiosos puseram-se contrários à possibilidade de tal ato. Os juízes aceitaram sim que tais grupos tivessem direito à voz, exigindo deles, porém, que usassem da razão e não de argumentos puramente religiosos. Isso se dá pois, dentro do campo jurídico, mesmo em um Estado laico, a religião possui peso. Esse peso se dá mormente pelo povo possuir e decidir professar uma fé. Como o povo é a base de um Estado e é também o soberano do poder, ele tem sim o direito de protestar contra a discussão citada. Na sociedade brasileira, com alta incidência de cristãos, o capital simbólico da fé possui força grandiosa que não pode ser simplesmente ignorada.
    Por fim, a decisão para se permitir o aborto de anencéfalos só foi possível pois estava dentro do Espaço dos Possíveis do Campo Jurídico, e mostrou que por vezes o direito é capaz de adentrar áreas que não lhe dizem respeito. Também fica evidente, por aprovar algo contra-hegemônico, que não é totalmente instrumental, mas por não aprovar o aborto, que atua de forma dependente da sociedade.