segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Sobre cotas, igualdade e resistência: a dívida que carregamos

                  No mês de Outubro de 2015, pixações de cunho fortemente racista foram encontradas nas paredes do banheiro da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, estampando manifestações de ódio quanto à adoção de cotas sociais e raciais e contra os estudantes negros do curso (10, precisamente, em um total de 500 alunos). Frente à frases como “fora macacos cotistas” e “aqui é lugar de gente branca e inteligente”, o movimento negro se organizou para realizar uma série de intervenções nas classes durante as aulas, intervenção da qual recorto um pedaço do discurso para dar início aos pensamentos desse texo: “meritocracia é muito fácil, para quem já nasce em cima do pódio”.
                  Há de se considerar insano qualquer que afirmar em plena consciência, como fez o Partido Democratas (DEM) ao ajuizar a arguição de descumprimento de preceito fundamental com relação à adoção do sistema de cotas na Universidade de Brasília, que (sic) não existe racismo no Brasil. Insano, ou dotado de má-fé. Assumir que o racismo não existe porque não há a manifestação visual do ódio racial a todo o momento, alicerçado em argumentos de que a miscigenação étnica no país pôs fim à segregação racial, é a negação de um problema gigantesco e a contribuição mais eficaz para a perpetuação deste por mais anos a fio. Não só existe o racismo, ora velado, ora gritante (das platéias em estádios de futebol aos comentários na internet); como ele é também estrutural e internalizado e reproduzido em cada brasileiro que teve a “sorte” na loteria genética de não vir ao mundo marcado pela cor da pele preta - cada um de nós, e aqui justamente me incluo como branca e privilegiada, é racista. Somos racistas não apenas quando manifestamos ódio, mas também quando nos calamos frente a ele; somos racistas quando não problematizamos a quantidade de negros em uma sala de aula prestando o vestibular em comparação com a quantidade de brancos concorrendo nesse mesmo processo, quando não problematizamos a quantidade de negros estudando em uma universidade em comparação com a quantidade de negros limpando o nosso chão. E é da constante auto-desconstrução que me sirvo para afirmar que somos racistas, e muito, quando não defendemos o sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial por uma crença cega na meritocracia.
                  Boaventura de Sousa Santos, em seu texto “Poderá ser o Direito emancipatório?”, expõe uma série de problemas que acometem o século XXI quanto à crise contratualista entre Estado e Povo proporcionada pelo sistema capitalista. De sua conceituação, apreende-se os termos de fascismo social  e estratificação da sociedade civil, e dentro destes a classificação dos estratos sociais em sociedade civil íntima, sciedade civil estranha e sociedade civil incivil. Pode-se caracterizar a sociedade civil íntima como aquele seleto grupo de pessoas hiper-incluídas no Contrato Social e que mantém uma relação próxima com o Estado e com o Mercado, podendo desfrutar de uma gama de direitos político-civis, direitos sócio-econômicos e direitos culturais - está aqui a elite brasileira, hegemonicamente branca e detentora dos meios de produção e riqueza. Dentro da sociedade civil estranha temos os parcialmente incluídos, parcialmente excluídos, que pode exercer livremente os seus direitos civís e políticos (embora, muitas vezes, não o façam por falta de esclarecimento quanto à noção de cidadania) mas tem acesso restrito aos direitos sociais e culturais - nesse grande conjunto estão as classes média-baixas e pobres da população, em que a presença de negros já é notadamente maior. Por fim, na sociedade civil incivil, temos aqueles totalmente excluídos, maiores vítimas do fascismo social, marginalizados e socialmente invisíveis aos olhos da elite - não causará surpresa o fato de que essa parcela paupérrima de população é majoritariamente negra, e é esse o fator mais gritante do racismo no Brasil.
                  Se negros já encontram dificuldade de inclusão, aceitação e reconhecimento frente aos brancos (por mais absurdo que isso soe em pleno ano de 2015), a realidade enfrentada pelos negros pobres é ainda pior. Ainda dentro dos conceito de apertheid social de Boaventura, a grande parte pobre e negra da população está submetida a um Estado Autoritário, no ambiente das favelas e da intervenção policial, enquanto a seleta parte rica desfruta de um pleno Estado de Direito. São pessoas que muito, muito raramente têm acesso a uma educação capaz de proporcionar condições mínimas para a concorrência em um processo seletivo de uma universidade pública, sendo muito frequente a não completude sequer do ensino médio.
                  Não problematizar e buscar ferramentas para corrigir essa dívida histórica e triste realidade é colaborar com a perpetuação de um sociedade racista e opressora, que não se incomoda com o sangue negro quando ele escorre nas ruas, mas se incomoda com a presença negra na Universidade, nos shoppings da zona sul, no Supremo tribunal Federal, na presidência de um país. A necessidade de compensar séculos de escravidão, seguidos por mais séculos de abandono e marginalização,  é primordial para o alcance de uma sociedade democrática de fato, igualitária formal e materialmente, plural e saudável; e é preciso utilizar do Direito, como ferramenta para a concretização desse horizonte não excludente, não segregacional, não patriarcal e não elitista - nas palavras de Boaventura: “O Direito pode ser emancipatório, na medida de evitar e minimizar processos de exclusão”.
                  Termino esse texto com a frase que encerrou também o discurso intervencionista do movimento negro da USP de Ribeirão Preto: “As cotas são só o começo - vocês nos devem até a alma”.

“[...] Quer saber o que me move? Quer saber o que me prende?
São correntes sanguíneas, não contas correntes
Não conta com a gente pra assinar seu jornal
Vocês descobriram o Brasil, né? Conta outra Cabral
É um país cordial, carnaval, tudo igual
Preconceito racial mais profundo que o Pré-Sal
Tira os pobre do centro, faz um cartão postal
[...]
A guerra não é santa nem aqui e nem em Jerusalém
É o Brasil da mistura, miscigenação
Quem não tem sangue de preto na veia deve ter na mão”
(Inquérito - Eu só peço a Deus)



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