domingo, 18 de outubro de 2015

Considerações sobre a decisão judicial de Jales acerca da transexualidade.

Por meio das revoluções liberais, a racionalidade burguesa ilustrada elevou a ideia de igualdade dos homens à condição de princípio fundamental da humanidade, concedendo-lhe status de direito natural. Direito natural formal, pela perspectiva de Weber, oriundo da lógica da nova classe que assumia o poder. No Brasil, tal concepção foi logo incorporada formalmente ao ordenamento jurídico nacional, como se observa da Carta Política de 1824, todavia, na prática, o que se vê é um longo e lento processo histórico rumo à igualdade material. Seguindo essa linha, no texto constitucional de 1988, o legislador constituinte procurou estender expressamente tal direito à mulher (art. 5º, I, da CF/88), considerando uma realidade social construída sobre a concepção binária de homem e mulher, como se depreende, por exemplo, da definição de entidade familiar do art. 226, § 3º, da CF/88.

Deste modo, não seria incorreto imaginar que, para o legislador de 1988, estar-se-ia criando um sistema jurídico abstrato que abarcaria toda uma constelação de fatos relacionados à igualdade das pessoas, ao prever que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Todavia, a evolução das sociedades tem dado ensejo à manifestação de grupos que sempre viveram à margem do direito formal ou, na melhor das hipóteses, procuraram se adaptar, bem ou mal, às regras normativas vigentes. Um desses grupos é aquele dos transexuais, os quais são alvo constante de assédio moral e de discriminação em diversas esferas, das relações interpessoais ao trabalho. Para serem respeitados e se sentirem aceitos como iguais na sociedade, afastando, assim, os inevitáveis traumas psicológicos, muitos têm optado pela via judicial para garantir a materialidade de seus direitos.

No caso concreto, analisado pela Vara do Juizado Especial da Fazenda Pública da Comarca de Jales, o requerente, transexual comprovado, pleiteia a tutela antecipada para cirurgia de mudança de sexo, a cargo do SUS, e para alteração do nome e do sexo, de masculino para feminino, no seu registro civil. Este juízo singular deferiu o pedido, acolhendo o argumento de sofrimento psicológico decorrente do tratamento social recebido pelo paciente, ora requerente, e amparando sua decisão em jurisprudência dos tribunais judiciários, em disposições do Código Civil (como o art. 13 do CC que permite a disponibilização do próprio corpo naqueles casos previstos) e em direitos fundamentais, como liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana. Reforça que o transexualismo não é uma patologia e aduz que tal medida evitaria possíveis ações suicidas e que garantiria o pluralismo constitucional, respeitando-se, assim, todas as formas de viver.

Olhando por uma perspectiva da racionalidade weberiana do direito, tal decisão procurou aplicar disposições jurídicas vigentes ao caso concreto, objetivando encontrar uma solução jurídica que prestigiasse o direito material dessa pessoa de receber um tratamento igual e digno de toda a sociedade. Em que pese o nobre intuito, é preciso se debater se esta é a melhor solução para casos semelhantes. Afinal, considerando que a origem da questão provém da incompreensão e da intolerância, ou seja, tem cunho fundamentalmente social, a tentativa de adequar fisicamente uma pessoa a um dos dois padrões socialmente estabelecidos (homem ou mulher) é a melhor forma de lhe garantir um tratamento digno, igual e de promover a pluralidade? É preciso considerar, além dos riscos da intervenção cirúrgica e dos possíveis efeitos colaterais de um tratamento hormonal, a eventual continuidade da discriminação social. Nesse sentido, talvez o melhor caminho, no longo prazo, seria atuar na educação e promoção de direitos desses grupos, além da criação de regras especiais para sua proteção no ordenamento jurídico.    

Nesse contexto, é oportuno observar a posição do Irã sobre o assunto. Lá os transexuais são vistos como vítimas de uma doença curável mediante cirurgia e o governo subsidia tal procedimento (o Irã é o segundo país do mundo em cirurgias desse tipo). Já os homossexuais são inexistentes oficialmente, como afirmou o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, em 2007, ao declarar que “não há homossexuais no Ir㔹. Segundo relatos, as pessoas são bastante incentivadas e procuram mudar de sexo, como uma forma de serem aceitas socialmente². Todavia, como um contraponto, vale refletir sobre as palavras confessadas por uma das transexuais operadas, que, segundo ela, representam um sentimento amplamente compartilhado em silêncio: “Não teria mutilado meu corpo se a sociedade tivesse me aceitado do jeito que eu nasci”¹.

Referências:
1.       Operação antigay. Folha de São Paulo. Disponível em:
Acesso em 18/10/2015

2.  Gays sofrem pressão para mudar de sexo e escapar da pena de morte no Irã. BBC Brasil. Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141105_ira_gays_hb>. 
Acesso em 18/10/2015


Fernando – 1º Ano Direito Noturno (texto sobre o Direito Formal e Direito Material - Weber)

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