quinta-feira, 5 de março de 2015

A força do direito e o aborto de anencéfalos

O julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), requerido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS) com a finalidade de declarar inconstitucional a hipótese da criminalização do aborto, qual seja, quando se tratar de fetos anencefálos, demonstra claramente várias das teses apontadas por Bourdieu em sua obra O Poder Simbólico.
Bourdieu entende a sociedade a partir do que ele chama de campos, que se interligam, porém possuem certa autonomia. Cada campo que constitui a sociedade apresenta características próprias e tem como mais essencial a existência da letra do poder simbólico, como a linguagem jurídica no campo do Direito, e uma série de estruturas incorporadas, denominadas de Habitus, que servem para diferenciar seus membros dos outros campos e, ao mesmo tempo, homogeneizá-los dentro de um mesmo campo. Para Bourdieu, o Direito constitui um campo diferenciado dos outros, com uma maior autonomia e um poder simbólico distinto por sua posição de destaque e capacidade de influência e agregação dos demais.  
O campo jurídico, apesar de sofrer a influência de pressões externas, busca fugir do formalismo e do instrumentalismo através da racionalização dos problemas e questões sociais, neutralizando-os, por meio da sintaxe caracterizada por construções passivas e frases impessoais, e universalizando-os de modo a impor universalmente ao reconhecimento, convertendo tais questões sociais em necessidades simultaneamente lógicas e éticas. Outro aspecto importante apontado por Bourdieu é a limitação da interpretação no âmbito jurídico pela própria definição do espaço dos possíveis, no qual as relações de forças específicas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam os conflitos de competência que nele têm lugar e a lógica interna das obras jurídicas delimitam o universo das soluções propriamente jurídicas, não havendo espaço para ideologias.
Desse modo, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na ADPF, que autorizou a interrupção da gestação de fetos anencéfalos, primeiramente constata a interação dos campos sociais, sendo que em diversos pontos do processo constatam-se o conflito de poderes simbólicos éticos, jurídicos, morais e religiosos. Em segundo lugar, o predomínio e a autonomia do campo jurídico em relação aos demais são claros e se mostram também necessários para efetivar as decisões estatais frente os diversos grupos sociais conflitantes, de modo a abrir o debate entre as partes envolvidas e não prejudicando minorias. Em terceiro lugar, torna-se evidente a incorporação de aspectos sociais pelo campo jurídico, convertendo-os em sua linguagem própria, afinal, vê-se o debate acerca da questão da vida transformado em um debate de princípios jurídicos hierarquizados, como liberdade, dignidade da pessoa humana, saúde e autodeterminação. Por fim, é interessante destacar o papel da hermenêutica nesse caso, pois, dentro do espaço dos possíveis, o Ministro Marco Aurélio pode incorporar as questão do aborto e tomar uma decisão jurídica afastada do senso comum, beneficiando a minoria de mulheres que desejam interromper a gestação de anencéfalos e fazendo o Direito exercer seu papel de gerador de habitus no próprio campo jurídico e na sociedade em geral.

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