sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Sobre Marx e a Contemporaneidade Analítica: Caso Pinheirinho

 “(...) inesperado quadro esperava o viandante que subia, depois desta travessia em que supõe pisar escombros de terremotos, as ondulações mais próximas de Canudos.” (CUNHA, 1984: p. 12)
Embora resguarde em si teor dramático referente ao episódio da invasão do Arraial de Canudos, cujo fim trágico se deu no ano de 1897, tal descrição caberia com relevante semelhança ao recente caso da comunidade do Pinheirinho, na cidade de São José dos Campos, Vale do Paraíba. Sob a lente da cronicidade, é de espanto que mais de cem anos separem ambos os eventos; que gerações dos Direitos Humanos marquem a transição entre o período Regencial e a atual Democracia Social brasileira; que a noção hodierna do Direito traga avanços no aspecto humano, enquanto as práticas de expulsão permanecem – guardadas certas peculiaridades de ação – igualmente rígidas, lesivas e contra qualquer princípio da dignidade da pessoa humana, hoje cláusula pétrea da Constituição.
Cabe, inicialmente, referência ao diálogo estabelecido entre Hegel e Marx – respectivamente segundo a dialética idealista e materialista –, em que o primeiro propõe ser o Direito pressuposto da liberdade, a superação das particularidades em detrimento da liberdade geral; e o segundo o critica em sua “idealização” de um Estado que seria somente uma abstração, posto que não há patamar de igualdade em que a aplicação legal caberia sem desequilíbrio ou parcialidades numa sociedade a priori desigual e classista - a capitalista. Pinça-se, então, a ideia de Karl Marx da luta de classes para base de conflito, já que a ideia da ação de reintegração de posse tinha como partes membros de posições sociais distintas – a saber, uma corporação e um grupo de sem-teto.
O foco da discussão ultrapassa a questão de quem tem em seus argumentos a razão, dada a comprovada posse de terra pela empresa e o direito constitucional à terra pelos “esbulhadores”, direitos resguardados e hierarquicamente equivalentes, pois cabe analisar a forma como foi conduzido o processo pela Justiça do Estado de São Paulo – em desacordo com os preceitos legais e estatutos dos magistrados. A parcialidade como atuaram os responsáveis pela decisão tornou o panorama favorável aos detentores do capital, Selecta Comércio e Indústria S/A, permitindo a retomada a posse pela Polícia Federal no início de 2012, oito anos após o início do confronto judicial.
É de conhecimento que a decisão da juíza Márcia foi o início do verdadeiro atentado às pessoas que ali viviam, cujos bens foram violados, junto à própria dignidade individual, nas demolições sem notificação prévia ou tempo hábil de retirada dos pertences; nos registros de abuso sexual; nas agressões físicas ou verbais; e nas duas mortes de moradores. Das tantas perguntas restantes, tem-se aquela em que a paridade dos direitos – à propriedade privada e à moradia – se choca aos direitos coletivos assegurados em Constituição e, de ordem superior, em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. O que valeu mais no caso supracitado? Não há dúvidas de que se cumpriu, primeiramente, o direito à propriedade, muito embora essa escolha tenha ocasionado – como causaria nas circunstâncias apresentadas – um prejuízo incalculável, material ou mesmo moral, às vítimas.
Sabe-se que as normas positivadas na Constituição atual evoluíram em relação às anteriores, sendo o obstáculo maior justamente sua concretização. Mais do que ao Executivo e Legislativo – que já, em teoria, provém as bases de existência do Estado Social –, cabe ao Judiciário a compreensão de que as leis são passíveis de compreensões variadas por justamente ser o cenário nacional desigual, não devendo ser sua aplicação rígida e “igual”, posto que diferenças existem entre as partes envolvidas nos processos. Dessa maneira, fosse essa ideia acatada pelos magistrados responsáveis pelo caso Pinheirinho, talvez a ordem de reintegração sequer houvesse ocorrido nos termos vistos, talvez as dívidas da empresa fossem levadas em consideração junto à improdutividade da terra e à inversa produtividade da comunidade assentada, e o destino das famílias que tinham um lar formado e uma identidade firmada pudesse ter outra via – uma menos violenta e criminosa.
“Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo.” (CUNHA, 1984: p.133)


Referência Bibliográfica: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante)

Pinheirinho, Marx, Direito e a propriedade acima da dignidade

             A ideologia liberal burguesa e seu conjunto de preceitos surgidos no século XVIII ainda estão fortemente enraizadas no ideário que guia nossa sociedade. Mesmo na segunda década do século XXI, ainda há dificuldade – e muitas vezes falta de interesse – em enxergar que a igualdade formal prevista pela ideologia burguesa não é suficiente para gerir de forma socialmente saudável qualquer sociedade desigual. Não se pode tratar de forma igual pela lei pessoas que vivem em condições completamente diferentes. A ilusão de igualdade presente em nossa sociedade ajuda a criar as “flores imaginárias” a que Marx se referiu, auxiliando no conformismo e resignação frente aos mecanismos de dominação, dentre os quais muitas vezes o mecanismo do direito exerce papel preponderante.
No caso da reintegração de posse do Pinheirinho, um grande problema explicitado foi o da ligação entre a elite econômica e a aplicação do direito, no seguinte aspecto: a elite econômica ocupa as cadeiras de grande parte do poder judiciário do país. Quando um membro deste poder toma uma decisão como a que a juíza tomou no caso do Pinheirinho, sua orientação é ideológica. Neste caso, a noção marxista de que o Estado existe para servir aos interesses da burguesia é confirmada, ainda mais sendo a máquina estatal composta por membros da própria burguesia. Quantos magistrados vieram da favela? Quantos magistrados já precisaram, em algum momento da sua vida, “invadir” um terreno vazio para terem onde morar?
Sob uma perspectiva hegeliana, a ordem judicial e mesmo a ação policial estiveram ali corretamente. No caso da ordem judicial, foi o direito, através da sua forma e expressão na sociedade, ou seja, o poder judiciário, agindo para garantir a liberdade expressa no direito de propriedade. A ação policial, neste contexto, também seria legitimada, uma vez que a polícia está agindo também para garantir o direito à propriedade. A polícia, aliás, é talvez a única instituição estatal presente num modelo de Estado Liberal perfeito, pois o papel desta seria o de garantir a manutenção da ordem para que o pleno exercício da propriedade fosse praticado sem impedimentos. Foi precisamente este o papel que a polícia cumpriu ao expulsar os moradores do Pinheirinho de suas casas.
Mudança no ensino do direito, educação emancipatória e uma reforma gradual nas instituições e no direito, alcançada através da pressão e atuação de movimentos sociais, estas são algumas belas proposições para a busca de condições sociais mais dignas, partindo de uma perspectiva de respeito mais à dignidade do que à propriedade. A estrutura de dominação que proporciona episódios como o do Pinheirinho está montada e forte há séculos. O processo de mudança é longo e difícil, mas possível.

Lucas Mota Plaza - 1º ano Direito - Diurno