sábado, 8 de setembro de 2012

Habermas e Durkheim: apontamentos para um possível diálogo entre dois grandes teóricos da sociedade.


Em filosofia ou em sociologia, a relação entre dois autores é, normalmente, bastante complicada, e isso, principalmente, quando se trata de autores cujas similaridades não são tão explícitas. Um exemplo desse tipo de dificuldade dá-se com os autores de que pretendemos tratar no presente trabalho: Habermas e Durkheim. A dificuldade em relacionar esses autores constitui-se na falta de uma presença tão explicita e consensual (entre leitores) da similaridade entre eles: se, se fosse, por exemplo, relacionar Habermas e Weber teríamos imensa facilidade[1], porém, o mesmo não se dá no caso de Durkheim.
            Apesar de toda essa dificuldade, acreditamos que podemos estabelecer algumas similaridades em um aspecto que chamaremos de ético. O que isso quer dizer? Trata-se de mostrar que, naquilo que concerne às relações entre a sociedade e o comportamento dos indivíduos, Durkheim e Habermas possuem algumas ideias bastante similares.
            É claro (de modo algum negaríamos) que esse tipo de relação enfrenta seus problemas: não é preciso ter um conhecimento muito profundo de história para saber que os autores que estamos tratando viveram em tempos distintos e tiveram contato com sociedades distintas.
            Essa dificuldade, no entanto, pode, em nossa perspectiva, ser contornada, notando-se que pensamos no fato de que, ainda que relativizemos cada autor ao seu período histórico, perderemos a possibilidade de acreditar em sua atualidade se formos radicais nesse tipo de relativização. Assim, embora seja um absurdo afirmar ideias como a de que Durkheim teria entrevisto as bases do pensamento de Habermas ou estaria preocupado com os mesmos problemas que o teórico da ação comunicativa, não estaremos, a nosso ver, cometendo uma heresia intelectual se procurarmos mostrar que algumas das conclusões a que Durkheim chegou a respeito das características gerais da sociedade se aproximam daquelas preconizadas por Habermas e podem servir para lidar com alguns dos mesmos problemas que este último enxerga no cenário contemporâneo.
            Além disso, antes de adentrarmos o conteúdo dessa temática, acreditamos ser razoável deixarmos claro o nosso material de trabalho; com isso esperamos estar delimitando melhor a temática e a ambição de nosso trabalho. Dentro dessa perspectiva, no caso de Durkheim, nosso instrumento de trabalho serão as obras mais conhecidas, notando-se que, embora não tenhamos a pretensão de fazer um escrutínio rigoroso de tais obras, elas nos permitirão ter uma visão geral do pensamento do autor; dentro desse objetivo nossos textos são: As regras do método sociológico (DURKHEIM, 2007) e Da divisão do trabalho social (DURKHEIM, 2010).
            No caso de Habermas, nos limitaremos a um único texto; é claro que procuraremos relacionar tal texto com as características do pensamento de Habermas, porém procuraremos tratá-lo como a base de nossas exposições, pois acreditamos que ele é perfeito para se repensar, em bases mais recentes, os ideais de solidariedade sobre os quais refletiu Durkheim. O texto em questão é Trabalho e interação (HABERMAS, 2007). Nesse texto, ao refletir sobre algumas lições proferidas pelo jovem Hegel, Habermas constrói concepções que, futuramente, dariam origem à famigerada noção de luta por reconhecimento. É, principalmente, focados nessa noção que iremos, aqui, trabalhar o pensamento de Habermas.
            Dito isso, acreditamos poder passar ao conteúdo de nossa temática. No desenvolvimento de tal conteúdo dividiremos nosso raciocínio em duas etapas: primeiramente, trabalharemos, separadamente, as noções Durkheimianas de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, e a noção habermasiana de luta por reconhecimento; e depois, passaremos a correlacionar os dois autores.
            Começando, então, passemos à consideração do pensamento de Durkheim. Em tal pensamento começaremos definindo a solidariedade mecânica: em Da divisão do trabalho social (DURKHEIM, 2010), Durkheim explica que nas sociedades mais antigas (que nós, no senso comum, tenderíamos a chamar de primitivas) a divisão do trabalho tende a ser menor, e, consequentemente, menos especializada; dentro dessa situação, o sociólogo explica que existe uma solidariedade mecânica no sentido de que a vida dos indivíduos particulares, na medida em que estes indivíduos possuem menos importância prática, pode ser substituída. Esse estado de coisas gerado pela solidariedade mecânica causa uma grande dependência, por parte do indivíduo, com relação à sociedade, uma vez que este (indivíduo) precisa, constantemente, provar o seu valor (seguir de maneira metódica os ritos e as tradições) para continuar vivendo em tal sociedade. Daí, como assinala o próprio Durkheim (2010), o direito penal, ser muito mais intenso e efetivo, uma vez que não há uma preocupação muito grande em valorizar a vida que se mostra inútil ou até ameaçadora para tais sociedades.
            Fornecido um comentário considerável a respeito da noção de solidariedade mecânica, passemos à consideração da solidariedade orgânica: segundo Durkheim (2010), nas sociedades modernas (aquelas que o senso comum, muito provavelmente, trataria como sendo mais evoluídas ou atuais) há uma divisão maior do trabalho de modo que cada indivíduo, devido à posse de um saber mais efetivo e especializado, passa ter excepcional relevância para os fins do todo (social); é dentro dessa situação que o autor de Da divisão social do trabalho lança mão da noção de solidariedade orgânica. Essa situação caracteriza muito bem a situação do ideal das sociedades modernas onde o indivíduo passa a receber um respeito maior e, consequentemente, uma maior valorização. Dentro desse contexto, um direito penal mais invasivo perde sua força e dá lugar a uma preocupação maior com o direito “restitutivo” (direito civil, direito de família, direito tributário e etc.). Tem-se, aí, o surgimento de uma maior preocupação de se restituir, a cada indivíduo, aquilo que lhe é de direito (enquanto nas sociedades ditas mais antigas, o direito penal tenda a ser uma espécie de retaliação contra o indivíduo que traí as tradições de tais sociedades, nas sociedades modernas o direito tende, em grande parte, a ser uma tentativa de restituir o que é devido e, mesmo, reformar um indivíduo que precisa ser reintegrado na vida social).
            Feito esse comentário, acreditamos poder, por enquanto, encerrar nossas considerações a respeito de Durkheim e passar a uma consideração a respeito de Habermas. Esse autor, no, já mencionado, Trabalho e interação (Habermas, 2007), começa desenvolver a ideia de que, se no campo de trabalho os indivíduos lutam pela sobrevivência, nas relações sociais eles lutam por reconhecimento. Essa concepção de Habermas irá se desenvolver melhor em suas obras posteriores; abandonando completamente um materialismo radical, o autor alemão procurará dar uma ênfase maior em aspectos morais que permanecem inerentes à linguagem. Essa ideia é muito bem desenvolvida Teoria de La accion comunicativa - complementos (1989); em um dos textos dessa obra, Habermas desenvolve a ideia do que chama de uma pragmática universal. Tal ideia está relacionada com a tese que, presente na linguagem cotidiana, existem, nas grandes civilizações dos dias atuais, valores morais que evidenciam ideais morais (muitas vezes, até iluministas) de emancipação humana. Nesses ideais vemos, na contramão de muitos movimentos destrutivos como o nazismo[2], a sobrevivência de alguns pontos de vista que, talvez, seja nossa única esperança de que tais movimentos não venham a se repetir. Esse tipo de ideia, inclusive, é, também, desenvolvida no famigerado O discurso filosófico da modernidade (HABERMAS, 2002); ainda que não tenhamos, aqui, pretensão de desenvolver a complexidade desse trabalho, é interessante lembrá-lo como sendo, entre outras coisas, a constatação de um projeto (o da modernidade emancipatória), que ainda não foi realizado, e, no entanto, não deixa de sobreviver enquanto projeto.
            Para Habermas, uma sociedade emancipatória, abre a possibilidade de que os indivíduos encontrem sucesso em suas lutas (por sobrevivência e reconhecimento), e não caiam nas barbáries do fascismo e do nazismo.
            Feito esse comentário, acreditamos poder encerrar nossos comentários referentes à Habermas e passar ao diálogo entre esse autor e Durkheim. Antes de iniciarmos os principais raciocínios que concernem a esse diálogo, consideramos razoável expor a principal tese que nos guiará: trata-se de, ainda que de modo o mais modesto possível, tentar mostrar que o tipo de ideal que Durkheim assinala nas sociedades modernas (onde há uma divisão orgânica do trabalho) possui pontos de coincidência com os ideais de emancipação que Habermas acha ser possível detectar, mesmo nos dias de hoje, na linguagem cotidiana.
            Buscando, então, esse objetivo acreditamos ser prudente começar deixando claro que , segundo Durkheim, o indivíduo que se desprende da moral social[3] (fruto das solidariedades orgânica e mecânica) constitui-se em um indivíduo patológico. Confiamos que essa tese, embora tenha sido concebida em um contexto histórico bastante específico, pode ganhar sua atualidade quando pensada em correlação com os mesmos problemas que motivaram as reflexões da escola de Frankfurt e, consequentemente, do pensamento de Habermas. Tais problemas estão intimamente relacionados com uma situação de calamidade moral que, durante o século XX, atingiu boa parte das grandes civilizações do globo terrestre: situações calamitosas e violentas como o nazismo, o fascismo, o stalinismo, o franquismo, o salazarismo, os governos ditatoriais da América latina e algumas das atitudes exageradas do macarthismo são (todas essas situações) a prova, se tentarmos utilizar as noções de Durkheim (2010), da presença, em muitas civilizações importantes, de indivíduos patológicos. Isso fica bastante claro se nos focarmos, primeiramente, na solidariedade orgânica: o ideal de uma solidariedade que valoriza o indivíduo e sua integração na sociedade é completamente solapado pelas manifestações políticas que mencionamos (nazismo, fascismo, stalinismo, franquismo e etc.), uma vez que tais manifestações – principalmente em casos do extermínio em massa (como os campos de concentração)[4] – banalizam completamente  a vida como um todo, e, consequentemente, a figura do indivíduo. Dentro dessa situação, inclusive, mesmo a solidariedade mecânica é, muitas vezes, solapada: no sentido proposto por Durkheim (2010), a solidariedade mecânica não deixa de ser uma solidariedade em prol da vida; em regimes como o fascismo e o nazismo, mesmo existindo a presença do trabalho forçado[5] (por exemplo), os indivíduos, torturados ou, pelo menos, ignorados (por certos ditadores) até perderem toda sua dignidade, perdem, completamente, a noção do próprio sentido social do trabalho.
            Dentro de toda essa situação de banalização da solidariedade, vemos, claramente, que os conceitos de Durkheim podem, muito bem, ser retomados para se pensar problemas como aqueles preconizados por Habermas: assim como Durkheim, Habermas, ao descobrir uma luta por reconhecimento (uma esfera moral da vida social) e, posteriormente, um projeto emancipatório inerente a tal luta, acaba, ainda que por vias diferentes, levando a se pensar diagnósticos muito similares àqueles que os conceitos durkheimianos nos permitem pensar; tanto Habermas, quanto Durkheim colocam, na base do ideal de uma sociedade “saudável” (para fazer jus à terminologia do próprio Durkheim) a necessidade de algum tipo de solidariedade entre os indivíduos. Esse tipo de solidariedade, pelo menos no plano teórico, evolui e deu origem a um ideal de sociedade onde a divisão orgânica do trabalho (no caso de Durkheim) e os valores morais inerentes à linguagem (no caso de Habermas) abririam a possibilidade de se pensar um tipo de organização em que o indivíduo é valorizado e qualquer tipo de barbárie é superada aos poucos. Esse tipo de ideal, no entanto, foi solapado por muitas das atitudes do século XX, daí a importância de, sem desvalorizar outros pensamentos e relações, se retomar, em um diálogo, os dois autores (Durkheim e Habermas) cuja obra nos ajuda a estarmos alertas para o perigo de voltarmos a estilos de vida mais agressivos que aqueles que o próprio Durkheim (2010) atribuía àquilo que, no senso comum, costumamos chamar de sociedades primitivas.
            Feito esse comentário, acreditamos poder encerrar este texto. É claro que, dentro de nossa proposta de diálogo (Durkheim e Habermas), este texto é extremamente insuficiente, porém acreditamos que esse tipo de diálogo, quando estabelecido com boa fé e rigor acadêmico, jamais pode ser esgotado por um único diálogo. Sendo assim, esperamos que o nosso texto, mais do que a tentativa de se fechar um tema ou defender uma tese ambiciosa, se constitua em um estímulo para uma pesquisa que deva ser continuamente realizada.



[1] Principalmente se prestarmos atenção em textos como Técnica e ciência como ideologia (Habermas, 2007).
[2] Vale lembrar o interessante trabalho de Adorno e de Horkheimer (1985) que, por fazerem parte da escola de Frankfurt, com certeza exerceram influência sobre Habermas.
[3] Fundada, tanto nas leis positivas, quanto na tradição.
[4] Realmente, os campos de concentração se fizeram o símbolo dos genocídios cometidos durante o século XX; isso porém não nos deve fazer subestimar outros regimes violentos, uma vez que, até os dias de hoje, há, em muitos países, a descoberta de vítimas, antes desconhecidas, de ditadores.
[5] “O trabalho pode libertar” (Hegel) era frase escrita na entrada de Auschwitz.


REFERÊNCIAS.
ADORNO, T e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de janeiro: Zahar, 1985.
DURKEHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_____. Da divisão social do trabalho. São Paulo: Martins fontes, 2010.
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.  
_____. Técnica e ciência como ideologia in HABERMAS, J. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: edições 70, 2007.
_____. Teoria de La accion comunicativa – complementos. Madrid: Editora Catedra, 1889.
_____. Trabalho e interação in HABERMAS, J. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 2007.

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