''Em primeiro lugar, a pena consiste numa reação passinal. Essa característica é tanto mais aparente quanto menos cultas são as sociedades. De fato, os povos primitivos punem por punir, fazem o culpado sofrer unicamente para fazê-lo sofrer e sem esperar, para si, nenhuma vantagem do sofrimento que lhe impõem. Prova-o o fato de não procurarem punir de maneira justa ou útil, mas apenas punir. Assim, castigam os animais que cometeram o ato reprovado e até os seres inanimados que foram o instrumento passivo desse ato. Mesmo que a pena seja aplicada apenas a pessoas, muitas vezes ela vai bem além do culpado e atinge inocentes : sua mulher, seus filhos, seus vizinhos, etc. Porque a paixão, que é a alma da pena, só se detém uma vez esgotada. Portanto, se, depois de ter destruído aquele que a suscitou de maneira mais imediata, lhe restarem forças, ela se estenderá mais longe, de uma maneira totalmente mecânica. Mesmo quando é moderada o bastante para se ater ao culpado, faz sentir sua presença pela tendência que possui a superar em gravidade o ato contra o qual reage. É daí que vêm os requintes de dor acrescentados ao último suplício. Em Roma, mais uma vez, o ladrão devia não apenas restituir o objeto roubado, mas pagar, além disso, uma multa eqüivalente ao duplo ou ao quádruplo do valor deste. Aliás, a pena tão generalizada de talião porventura não é uma satisfação dada à paixão de vingança ?
David Émile Durkheim
David Émile Durkheim
A obra cinematográfica ''Law Abiding Citizen'' ( sob o título de ''Código De Conduta'' no Brasil ) transita entre os campos da repressão passional e da matemática do Direito Restitutivo, através do questionamento : ''alguma justiça é melhor que nehuma ?'', e ecoa a sociologia durkheimiana. O filme, dirigido por F. Gary Gray, além de contrapôr a passionalidade e a racionalidade na execução da justiça, adiciona um complicador : a corrupção do sistema Judiciário e os interesses pessoais como comprometedores da eficácia do Direito Restitutivo e como suficiente justificativa para muitos do fazer justiça com as próprias mãos. Os crimes praticados quando da violenta invasão da casa de um brilhante engelheiro, Clyde Shelton ( interpretado por Gerard Butler ), contra a esposa e filha deste, envolvendo assassinato e estupro, além da agressão a ele demandavam uma eficiente restituição do Direito das sociedades modernas : fazia-se necessária a justiça. Por sua vez, o promotor encarregado do caso, Nick Rice ( Jamie Foxx ), tendo em vista a insuficiência de provas para se lançar mão do delinqüente, Clarence Darby ( Christian Stolte ), e o interesse em manter alta a sua freqüência de condenações na promotoria, fez um acordo com Darby, prendendo-o por três anos e condenando a dez anos de prisão seguidos de uma execução o cúmplice do assassino, Rupert Ames ( Josh Stewart ). A psicopatia que aflorou em Clyde, proveniente da passionalidade advinda das experiências atravessadas e da ausência de auto-controle, a sua tentativa de vingar-se e de implodir, por si mesmo, o sistema de justiça, tido por ele como falido e fracassado, lançando mão, se preciso fosse das mais abomináveis atrocidades, remetem os espectadores às palavras de Émile Durkheim, quando descreve as sociedades mecânicas e a passionalidade do Direito Repressivo, oriundo da consciência coletiva impregnada no indivíduo, citadas acima no trecho introdutório.
Para Clyde, o Direito Restitutivo, essencialmente racional,
técnico e operacinal, mostrou-se demasiadamente moderado e ineficaz no atendimento às demandas por justiça. A caracterziação de Durkheim do Direito Racional traz consigo o centro das críticas de Clyde : ''Um sofrimento proporcional a seu malefício não é inflingido a quem violou o direito ou o menospreza; este é simplesmente condenado a submeter-se a ele. Ele [ o juiz ] enuncia o direito, não enuncia penas. O pleiteante que perdeu seu processo não é humilhado, sua honra não é enodoada. A violação dessas regras não atinge, pois, em suas partes vivas, nem a alma comum da sociedade, nem mesmo, pelo menos em geral, a desses grupos específicos e , por consegüinte, só pode determinar uma reação muito moderada. Sem dúvida, o assassinato é sempre um mal, mas nada prova que seja o mal maior. O que é um homem a menos na sociedade ? O que é uma célula a menos no organismo ?''. Clyde opta pelo Direito Repressivo Passional, que, para ele, promoveria alguma justiça, em lugar do vácuo de injustiça do Direito Restitutivo, seja quando toma providências para que Rupert agonize até a morte; quando assassina, tortura e dilacera Darby; quando espanca seu companheiro de cela e o assassina com o osso de rosbife; ou quando assassina detalhada e minuciosamente pessoas públicas a partir da cela solitária. O Direito vingativo de Clyde é o direito das sociedades primitivas de Durkheim : ''Com efeito, é um erro crer que a vingança seja apenas uma crueldade inútil. É bem possível que, em si mesma, ela constitua numa reação mecânica e sem objetivo, num movimento passional e ininteligente, numa necessidade irracional de destruir; mas, de fato, o que ela tende a destruir era uma ameaça para nós. Ela constitui, pois, na realidade, um verdadeiro ato de defesa, conquanto instintivo e irrefletido. Só nos vingamos do que nos fez mal, e o que nos fez mal é sempre um perigo. É uma arma defensiva que tem seu preço; mas é uma arma grosseira. Como ela não tem consciência dos serviços que presta automaticamente, não pode regular-se em conseqüência deles; em vez disso, difunde-se um pouco ao acaso, ao sabor das causas cegas que a impelem e sem que nada modere seus arrebatamentos. E, de fato, a pena permaneceu, pelo menos em parte, uma obra de vingança. Diz-se que não fazemos o culpado sofrer por sofrer; não é menos verdade, porém, que achamos justo que sofra. Talvez estejamos errados; mas, não é isso que está em questão. Supondo-se que a pena possa realmente servir para nos proteger futuramente, estimamos que ela deve ser, antes de mais nada, uma expiação do passado. Prova disso são as minuciosas precauções que tomamos para proporcioná-la, com a maior exatidão possível, à gravidade do crime; tais precauções seriam inexplicáveis se não acreditássemos que o culpado deve sofrer por ter cometido o mal e na mesma medida''. Ao final do filme, Nick, ignorando ''os direitos civis'' permite que seja instalada uma bomba por baixo da cama de Clyde, que explodiria se o último não desistisse de assassinar os políticos em reunião na prefeitura. Após a negativa de Clyde e o conseqüente assassinato das pessoas, o próprio Nick lança mão do Direito Repressivo descrito por Durkheim. Depois de Nick dizer '''Eu lamento'', a bomba é acionada executando Clyde enquanto este atentava para um colar que sua filha havia feito, cuja inscrição era ''Dad''.
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