Em uníssono, a quase totalidade dos estudantes de uma faculdade em São Paulo clama em alvoroço pela “decência”. Cena divulgada pela mídia para todo o país mostra o linchamento de uma estudante que foi reprimida por trajar um vestido vulgar, curto o suficiente para provocar uma reação extrema por parte dos seus companheiros. Num ato de selvageria, foi apedrejada com palavras agressivas, de baixo calão e julgada pela expressão da consciência coletiva, que aponta o comportamento da estudante como desprezível e passível de uma condenação moral.
Durkheim talvez não imaginasse que, em pleno século XXI, ditames morais, com fundo religioso, ainda guiassem as consciências coletivas. Muito menos que fossem as próprias os trilhos sobre os quais o Direito caminharia. Para ele, a altura dos anos 2000, o Direito estaria apoiado apenas sobre bases racionais, e praticado por operadores que estariam preocupados mais em prezar pela ordem econômica do que pela ordem moral. Talvez em decorrência de uma ingenuidade ou pela crença em alguma forma de evolução da humanidade, cometeu um erro em ignorar a força que a moral exerce sobre os homens.
O que se vê é que as penas são aplicadas para satisfazer as paixões. São essas paixões, exprimidas pela sociedade mesmo que indiretamente, que orientam o sentido e a amplitude das penalidades. Não bastava aos estudantes, no caso citado acima, que a garota se trocasse e vestisse algo mais “decente”, mas desejavam prezar pelos costumes e pela moral vendo-a punida e humilhada perante todos para que recebesse uma “lição”.
É fato que o Direito é praticado, muitas e na maior parte das vezes, em acordo com a passionalidade que emana da sociedade. Passionalidade esta que visa descartar toda ameaça à ordem, ao funcionamento equilibrado do “corpo social”. São as paixões públicas que ditam as regras de conduta, que apontam o certo e o errado. O que resta do pensamento individual? Deveria o pessoal ser suprimido em favor do coletivo?
As individualidades, não se pode negar, têm ganhado espaço para serem expressas, assumidas. Ocorre que até condições até então que se consideravam isoladas, pessoais, tornaram-se hoje movimentos coletivos. É o caso do movimento homossexual, por exemplo. O homossexualismo, antes tão condenado, julgado até mesmo como uma característica pessoal desprezível e causa para um isolamento social, hoje é bandeira erguida (com orgulho) em movimentos que buscam efetivar a igualdade prevista na Constituição. No entanto, aquela paixão pessoal que permanece contida, aquela que não alcança identificação dentro da sociedade, acaba por ser guia de uma consciência apenas individual, por ser um critério de julgamento próprio daquele que a possui.
Cabe ressaltar que a ordem pela qual preza a consciência coletiva, para muitos é uma ordem subversiva. Pelo simples fato de que, nas palavras de Humboldt: “termina por criar na sociedade contemporânea uniformidades que sufocam a natural variedade dos caráteres e das disposições.” Os governos e as paixões públicas tendem a se contraporem à variedade individual, em concordância com a tradicional concepção orgânica da sociedade, que estima “a subordinação regulada e controlada das partes ao todo, condenando o conflito como elemento de desordem e desagregação social.” (BOBBIO, Norberto. “Liberalismo e Democracia”, p.27). Os contrários à teoria organicista defendem que a variedade “é benéfica e é uma condição necessária do progresso técnico e moral da humanidade, o qual apenas se explicita na contraposição de opiniões e de interesses diversos” (BOBBIO, Norberto. “Liberalismo e Democracia”, p.28).
É, de fato, difícil, senão impossível, desvincular o Direito das paixões. É por si só uma ciência humana e operada por seres racionais, porém subjetivos, movidos não só pela razão como pela emotividade. Certos ideais de condutas foram incutidos à sociedade ao longo de milhares de anos, o que dificulta a aceitação daquilo que foge a esses ideais, embora cada vez as novas gerações tenham sido, no geral, mais flexíveis e mais tolerantes aos “desvios”.
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