sexta-feira, 27 de maio de 2011

Coisa, coisamente.


EU, ETIQUETA.
Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comparo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.
(Carlos Drummond de Andrade).


“A desvalorização do mundo humano ocorre na razão direta da valorização do mundo das coisas”. Estes são dizeres de Karl Marx, que traçam um paralelo com as questões poeticamente traduzidas por Carlos Drummond de Andrade no famoso poema acima. Ambos retratam a sociedade capitalista. Falam de seu sobrenome: o consumo. Para Marx e Friedrich Engels, que partilha das mesmas ideias do primeiro e as redige, é justamente a composição material, ou seja, a estrutura econômica, a grande determinante da maneira de ser, pensar e agir de uma coletividade. Assim, a lógica capitalista da intensa produção de riquezas aliada e garantida pela exaltação da mercadoria traça a realidade social e compõe a base sobre a qual a coletividade se sustenta. Coletividade esta que pensa, vive e reproduz o consumo intenso, crescente e incessante. Trata-se da disseminação da ideologia burguesa, que promove a falsa consciência: a alienação.
Ao consumir algo o indivíduo se vê parte do todo, tem a falsa idéia de inserção no mundo do capitalismo. E a imposição social passa a depender do que se possui. Em meio a isso, o anseio por mercadorias diversas cresce a tal ponto que os indivíduos se tornam escravos delas. A questão aqui já não é mais a necessidade básica, fundamental, o valor de troca sobrepõe-se ao de uso. O culto à mercadoria se dá não pelo que verdadeiramente ela é ou possui, mas pelo significado que ela carrega, pela fantasia a que atende. Trate-se do fetiche da mercadoria. E é aí que se dá a reificação do homem, que humaniza a mercadoria e se coisifica. As mercadorias ganham vida própria e os indivíduos passam a viver entorno delas. Assim, coisificados, desumanizados.
E já que, como afirmaram Engels e Marx, a dinâmica econômica se manifesta na dimensão político-jurídica cultural, o resultado disso não é apenas previsível, mas palpável e evidente na sociedade em que vivemos. A precariedade das relações sociais é notável, preocupante e vergonhosa. Valores e princípios que fogem à questão mercadológica são, quando não esquecidos ou postos de lado, colocados em segundo plano. O convívio se pauta nas aparências e cada um volta toda ou maior parte de sua atenção para a busca frenética pelo status, pela imposição social a partir do consumo. O grande vício da atualidade. A solidariedade, a compaixão, a sede de justiça, as noções de certo e errado, a moral, enfim, a humanidade está se deteriorando e se perdendo. Ajudemos a resgatá-la! Para que não sejamos mais coisas e reassumamos nosso título de seres humanos.

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