sexta-feira, 18 de novembro de 2022

ADPF 186, falácia da democracia racial em um país que reforça a monocultura do saber

 

O Brasil sempre foi tido pelo cenário internacional como um local receptivo, caloroso, que aceita as diferenças de maneira natural. Por conta disso, o viés preconceituoso que impera no país foi historicamente ignorado e convenientemente escondido sob o tapete do mito da democracia racial, o qual colocou o Brasil nesse papel de miscigenado e inclusivo, quando na realidade a população negra e parda sofre constantemente com o racismo escancarado pela violência policial, pela discriminação e pela falta de representatividade nas casas legislativas. É justamente nesse contexto conflitivo entre as diversas facetas do Brasil que a ADPF 186 é votada pelo Supremo Tribunal Federal, a arguição de descumprimento de preceito fundamental foi ajuizada pelo partido Democrata, a fim de alegar a inconstitucionalidade de uma ação afirmativa voltada para a população negra que alterava seu modo de ingresso na Universidade de Brasília 

É notório que há uma ruptura entre o país proposto por um discurso falacioso de inclusão e igualdade, e o real que mata todos os dias negros pelas ruas das periferias de grandes centros urbanos. Justamente por isso, é importante ressaltar que o alegado pelo partido Democrata, pautado nessa idealização de que somente o artigo 5° caput da Constituição Federal já assegura a igualdade entre todos os brasileiros é uma falácia. Tendo em vista que historicamente a população negra foi agredida e calada, a princípio pela escravidão que negava inclusive o aspecto humano de pessoas africanas, o que legitimava os mais cruéis abusos, desde a retirada forçada e o transporte completamente insalubre em navios negreiros até os horrores vivenciados pelos negros nos territórios coloniais, que perduraram, no Brasil, até o ano de 1888, no qual foi decretado o fim da escravidão. 

 No entanto é de amplo conhecimento que mesmo após o fim da legalidade do regime escravocrata, o preconceito e a violência, tanto física quanto simbólica, permaneceram no país, o que não é muitas vezes aceito por pessoas que acreditam, de fato, que a prática da escravidão foi um evento histórico com consequências findadas em seu tempo, que, sendo assim, não possuiria nenhum efeito nos dias atuais, para essas pessoas a decisão do Supremo Tribunal em legitimar ações afirmativas de cotas universitárias é uma maneira de ferir o princípio da igualdade formal, e portanto, o próprio espaço dos possíveis do campo jurídico já que esse está condicionado pelos valores constitucionais. Todavia, tal percepção da realidade se mostra errônea, pois através da análise de indicadores sociais, como taxas de analfabetismo, mortalidade, encarceramento, fica evidente o desprezo estatal voltado às pessoas negras. Sendo assim, é além de legitimo, necessário que medidas como as cotas sejam implementadas no Brasil, mesmo que essas contrariem o exposto por àqueles que acreditam na falácia da igualdade, uma vez que, além da igualdade formal prevista pela Constituição Federal, há também a igualdade material que engloba não só esse tratamento igual perante a lei, mas uma igualdade no plano fático, no acesso a recursos como saúde, educação e lazer e é nesse sentido que a Suprema Corte brasileira consagra como pertencente ao espaço dos possíveis jurídico essas políticas de reparação histórica “O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade.” Tal conclusão é permeada pelo caráter de universalização do direito, uma vez que propõe que normas já previstas na Constituição sejam aplicadas, na realidade para todos; a sentença possibilita que direitos fundamentais há muito assegurado para brancos sejam ampliados, concretamente, para negros, já que reconhece na ação afirmativa preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito. 

Mediante a decisão do tribunal, se faz imprescindível ressalvar que as ações afirmativas não foram elaboradas pelo Judiciário, portanto não configuram o que hoje é denominado de ativismo judicial, as cotas raciais foram realmente implementadas, efetivadas no espaço dos possíveis no ano de 2012 após a aprovação da lei 12.711 pelo Congresso Nacional, sendo assim o Judiciário não usurpou nenhum poder, somente respondeu uma demanda trazida a ele e deixou ao legislativo a prerrogativa de elaborar textos legais sobre o assunto, diante da necessidade trazida do campo social para o político. Sendo assim, o único caráter de antecipação do direito existente no julgado é a sugestão de que todas as universidades adotem medidas parecidas com as adotadas pela Universidade de Brasília. Desde a mobilização até a aprovação da lei de cotas, todo o processo tramitou entre o campo político e o social, o que denota além de legitimidade, o caráter democrático do processo, uma vez que correspondeu a demandas sociais e ampliou a possibilidade de ingresso à universidade por jovens negros, pardos, indígenas reforçando preceitos da democracia de inclusão e pluralidade no ambiente universitário, o que é fundamental quando a questão debatida versa sobre um ambiente intelectual tido por décadas como exclusivo da elite econômica.  

A grande mudança ocorrida tanto a nível estratégico quanto a nível constitutivo, não veio através da sentença proferida pela corte, mas sim pela aprovação da lei cotas, a decisão do tribunal contribuiu, evidentemente, para que as cotas entrassem em pauta, o que possibilitou a transformação e compreensão do assunto por dizer categoricamente que cotas raciais não ferem o princípio da igualdade. Com isso, modificou-se o contexto imediato uma vez que, as reivindicações do campo social foram legitimadas como constituintes do espaço dos possíveis jurídico. Isso se deu, entretanto, apesar da monocultura dos saberes que subjuga toda forma diversa daquela hegemônica, de acordo com ela a população negra, por estar “do outro lado da linha abissal” a qual delimita, quais culturas são legitimas e corretas, não poderia tomar esse lugar de produção intelectual ocupado majoritariamente por brancos que figuram em observância aos preceitos epistemológicos do ocidente. Ao possibilitar que indivíduos marginalizados participem da produção intelectual, incluindo essas vozes historicamente caladas por se encontrarem ao sul da linha, possibilita-se uma maior ecologia do saber, e consequentemente um combate a essa monocultura que dita como correta somente a produção eurocêntrica, historicamente hegemônica do conhecimento.  

Em suma a decisão proferida pela corte na ADPF 186 simbolizou grande avanço tanto em caráter estratégico quanto constitutivo por contrariar esse mito que paira sobre o Brasil de que há uma igualdade entre brancos e negros, a partir da decisão foi escancarado a necessidade de políticas que promovam, de fato, uma maior igualdade material entre a população branca e negra do país. Todavia é importante frisar que a conquista dessa política se deu por meio do legislativo o qual consagrou as demandas trazidas pelo campo social, A aprovação das cotas raciais possibilitou que essa há tanto perpetuada monocultura do saber, fosse contrariada através da democratização do espaço universitário, que com essa maior pluralidade passou incorporar, pelo menos um pouco, essa produção subalterna do conhecimento.  

Marina Cassaro 

A ADPF 186 - Cotas Raciais

    A ADPF 186, julgada pelo STF, diz respeito às cotas raciais. Atualmente, encontram-se divergências de opiniões quanto à adoção ou não delas em instituições como as universidades públicas, por exemplo. Os argumentos contra a implementação de cotas se baseiam, majoritariamente, no fato de que a Constituição Federal traz, em seu artigo 5°, a garantia da igualdade entre os indivíduos, alegando que não deve haver um “tratamento preferencial” ou até uma “esmola” quanto às vagas em instituições públicas.

    A oposição à existência de cotas, ainda, se apossa da ideia de racionalização do direito, alegando que as decisões judiciais, assim como as legislações, devem ser claras, objetivas e impessoais, como se o direito fosse uma ciência exata. 

    Contudo, há de se levar em conta as demandas sociais, uma vez que o fim do Direito é garantir a igualdade e a paz da nação, e dessa forma, deve estar disposto a englobar todas as necessidades da população. Nesse sentido, cabe dizer que deve ser levada em conta a historicização da norma, de modo que as leis devem ser aplicadas considerando o processo histórico de construção de uma sociedade e o contexto atual, os quais se complementam no entendimento de grupos sociais oprimidos e excluídos. 

    Diante disso, é válido ressaltar que as cotas buscam reafirmar os direitos de igualdade - os quais, no âmbito material, não são cumpridos - da população marginalizada de acordo com sua raça, ou seja, daqueles que ainda são vítimas do racismo presente no país. Por isso, o direito buscado é o de representação nos locais públicos; por exemplo, nas universidades, em cargos de autoridade, nos próprios espaços de produção do direito (e entre outros), a fim de garantir a igualdade, de fato, conforme prevista na Constituição. Logo, não há uma ameaça à democracia; pelo contrário, essa se caracteriza como uma decisão democrática pois visa a garantia de direitos a todos os grupos sociais. Ainda nessa questão, vale citar um pensamento de Garapon, o qual se encaixa nessa decisão, e diz que “a democracia não desmorona, ela se transforma”. Outrossim, cabe ressaltar que uma vez que há ideias em conflito tanto nos âmbitos jurídico quanto social, tal conflito se insere no "Espaço dos Possíveis”, de Bourdieu. 

    Portanto, essa mobilização transforma a cultura social geral e a compreensão de assuntos cotidianos, por meio da contestação da ideia de meritocracia. Em outras palavras, no Brasil, há uma ideia muito presente de que “quem quer algo, consegue através do esforço”. Essa ideia, entretanto, é completamente equivocada, visto que para que exista a meritocracia, é necessário que todos partam do mesmo lugar. Como isso não se concretiza no Brasil, tal discurso só serve para reforçar a exclusão racial, social e econômica, de forma que favorece aqueles que nascem com privilégios e disfarça a desigualdade através de um discurso errôneo de uma “corrida justa”. 

    Em conclusão, a ADPF 186 foi julgada como improcedente, ou seja, houve a defesa das cotas raciais no STF, o que caracteriza um marco notável no combate ao racismo no Brasil, um dos países mais racistas do mundo. Vale ressaltar, contudo, que as cotas não podem ser vistas como um fim, ou seja, não se pode pensar que, somente com elas, o problema da concretização da igualdade entre todos está resolvido, pois tal fato ainda está longe de ser alcançado. Logo, as cotas devem ser um meio para atingir a universalização da igualdade, e assim, ainda é necessária a luta contra a discriminação racial no Brasil. 

Giovana Parizzi

1° Direito - Matutino

 

ADPF 186 à luz dos sociólogos trabalhados

Em  2004, a Universidade de Brasília tornou-se a primeira instituição de ensino a adotar o sistema de cotas raciais no Brasil, objetivando a reserva de 20% das vagas à candidatos negros e um pequeno número para indígenas.

Após esta política de cotas raciais, a universidade foi objeto da ADPF 186, ajuizada, com pedido de suspensão liminar, pelo Democratas (DEM), perante o Supremo Tribunal Federal.

O partido almejava, através da ADPF, a declaração da inconstitucionalidade de atos do poder público que visavam a instauração de cotas raciais na universidade. Sob argumentações explicitamente racistas, o partido sustentou que iriam ocorrer danos irreparáveis caso a matrícula fosse realizada pelos candidatos aprovados com base nas cotas raciais, segundo eles:  “a partir de critérios dissimulados, inconstitucionais e pretensiosos da Comissão Racial”. Houve, então, acusação do  sistema adotado pela instituição de criar uma espécie de “tribunal racial” e , alegaram que “a ofensa aos estudantes preteridos porque não pertencem à raça “certa” é manifesta e demanda resposta urgente do Judiciário”.

Dos argumentos proferidos no tribunal, utilizou-se o paradoxo da igualdade, que se baseia em tratar os desiguais de forma desigual, proporcionalmente à sua desigualdade. Além disso, aspectos cronológicos e históricos balizaram a decisão sobre o caráter excludente do sistema educacional, bem como a necessidade de haver a temporalidade dos programas de ações afirmativas, isto é, de que estes permaneçam vigorando por um longo tempo.

 Para uma análise mais incisiva de tal caso, cita-se Bourdieu, cujo conceito da violência simbólica é atribuído a ele, a saber, trata-se de uma violência exercida das mais diferentes esferas sociais, desde a física, moral e psicológica. Influenciado pelos hábitos histórico-culturais de cada país e em diferentes gradações. Já  McCann entende que a mobilização do direito deve ser uma ação coletiva, ou seja, para que se assegure igualdade material a todos, faz-se necessário que haja a mobilização da sociedade como um todo. Para tanto, a influência do poder judiciário nas decisões legislativas é fundamental para que se faça justiça, tal qual Garapon pensava, isto é, para ele, a transferência de parte do poder legislativo ao judiciário está relacionada a uma judicialização, ou seja a utilização dos meios jurídicos para a formulação de leis a fim de que não se tenha lacunas na lei, bem como assegurar direitos àqueles que são historicamente marginalizados, os quais nesse caso da ADPF 186, são os negros e indígenas e a distribuição de cotas a eles.

Rienzzi Morais- 1 ano direito 

A prevalência eurocêntrica da razão metonímica e a ADPF 186

Conforme Sara Araújo, existe um primado do direito que engloba as perspectivas jurídicas atuais, cujo conteúdo se fundamenta em velhos conceitos, repetidos pelo canône, de um cultura eurocêntrica. Assim, a ciência moderna age como um projeto de civilização que estabelece os parâmetros do bem, do mal, do certo e do errado.

Ademais, a autora assinala o fato de que o pensamento moderno age de modo coercitivo em uma perspectiva global, dividindo o mundo em um "lado" e "outro lado". Por um lado, há a Europa e o mundo civilizado, que são àquelas opiniões que realmente devem ser levadas em conta conforme a modernidade. Por outro lado, existe aqueles conhecimentos que não devem ser levados em conta, sendo, inclusive, invisíveis ou inexistentes para o interlocutor do primeiro lado. Nesse sentido, vale ressaltar aquilo que a lógica filosófica chama de "argumentum ad ignorantiam", que designa uma falácia na qual o oponente é acusado de sua afirmação ser falso por um apelo à ignorância, ou seja, afirma-se que algo não é verdadeiro porque não foi provado que é falso e vice-versa.

A ADPF 186 apresenta uma perspectiva contrária a essa modernidade eurocêntrica, de modo que seja possível, por meio de um modelo de ação afirmativa implantado com vistas à amenizar as desigualdades sociais e a marginalização de uma minoria, reverter o preconceito histórico contra os negros. Evidentemente, essa última ideia parece irreal, à primeira vista, já que a história da escravidão e outros exemplos de segregação dos negros demonstram um racismo estrutural, do qual seja aparentemente impossível revertê-lo. 

Entretanto, a partir do conceito de Razão Metonímica e Espaço dos Possíveis, o primeiro de Sara Araújo e o segundo de Bourdieu, é possível: transformar uma monocultura do saber, do universal e do global marcado pelo eurocentrismo em uma cultura plural, inclusiva e voltada para às regiões mais marginalizadas também; bem como, tendo em vista os espaços dos possíveis, colocar essa perspectiva no campo jurídico. 

Essa última iniciativa é expressa justamente pela ADPF 186, que busca viabilizar a igualdade e garante a proporcionalidade entre candidatos nas universidades. Portanto, conclui-se que a decisão proferida por unanimidade é uma expressão contrária àquilo pregado pela hegemonia moderna, da qual busca a prevalência eurocêntrica e a razão metonímica. 

Cauan Eduardo Elias Schettini - Turma XXXIX - Direito matutino