quinta-feira, 17 de novembro de 2022

A esperança de uma tardia inclusão

  

     Em abril de 2012 foi realizado julgamento da ADPF 186 que julgou improcedente a sustentação  proposta pelo DEM de que aconteceriam danos irreparáveis se a matrícula na universidade fosse realizada pelos candidatos aprovados com base nas cotas raciais. Por unanimidade foi deliberado que as cotas raciais eram necessárias como um modelo de ação afirmativa para corrigir as desigualdades históricas, sociais, econômicas e educacionais provenientes do preconceito histórico contra os negros.

    Tendo em vista o conceito de poder simbólico de Pierre Bourdieu, contextualizarei a posição racista assumida pelo DEM.

 Pois bem, os indivíduos não se diferenciam somente pelo poder econômico, mas também por interações que facilitam acesso a recursos de poder simbólico como o capital cultural e social. Sendo assim, esse poder simbólico define a capacidade de domínio de uma elite branca e heterossexual, que tradicionalmente deteve o poder simbólico e econômico e utilizou desses meios para imposição de suas vontades e tradições. Ademais, de acordo com Maus o Judiciário sempre utilizou desses meios para expandir seu poder. No caso específico do DEM, essa elite branca utilizou do poder legislativo para impor seu interesse. No entanto, com o tempo o capital cultural se expandiu e permitiu a chegada de novos indivíduos (que não pertenciam a essa elite) aos grandes cargos. O foco se deslocou dos tribunais para o usuário e utilizou o direito como um recurso de interação social e política. Esse movimento de expansão foi realizado graças à magistratura do sujeito que permitiu a tutela de sujeitos mais desamparados através da interiorização do direito que possibilitou a legislação de sua própria vida. Dessa maneira, grandes cargos passaram a ser assumidos por indivíduos estrangeiros perante essa elite, ou seja, indivíduos com consciência da desigualdade presente entre as classes sociais e do racismo histórico.

Entretanto, por mais que esses indivíduos tenham chegado naquela posição, ainda era extremamente notável a dificuldade que as pessoas negras tinham de ocupar esses cargos. Um exemplo disso é a própria história do STF em que apenas 3 negros fizeram parte desse tribunal. Tendo isso em mente, é importante salientar que esses grandes cargos ocupados por indivíduos com consciência de classe e com consciência do preconceito racial existente são, salvo raras exceções, indivíduos brancos. Portanto, é de extrema importância garantir, além das cotas raciais, outros programas de inserção do negro na sociedade que possam perpassar a linha abissal que os segrega. Essa segregação que coloca a visão colonial e dominante como única e válida (monocultura do saber e do rigor do saber) deve ser furada a fim de garantir uma ecologia de saberes. Esta, através de uma maior diversidade, garante a análise de perspectivas distintas do direito como a racial, promovendo assim, finalmente, uma tardia tentativa de inclusão dos negros na sociedade.


ADPF 186: a ignorância brasileira frente aos conceitos de igualdade formal e material


        A proposta de instituir as cotas étnico-raciais nas instituições públicas de ensino superior é de tentar equalizar e corrigir as omissões e violências estatais acometidas contra todos aqueles que não pertenciam ao grupo dominante do branco europeu. Ao longo da história brasileira, não se pode ignorar o expressivo passado escravista o qual apresenta consequências até os dias atuais. A ratificação da Lei Áurea em 1888, apenas efetuada após muita luta e resistência negra, apresentou-se apenas como uma formalização legal, visto que o Estado não se preocupou em estabelecer medidas que permitissem a inserção do ex-escravo na sociedade. Com isso, a realidade apresentada foi a da perpetuação do trabalho em péssimas condições para essa população. Assim, estendendo esse contexto para a atualidade, a população preta via-se afastada das instâncias de ensino público superior, um resultado da omissão estatal frente a realidade histórica.
No entanto, em 2012, certa parcela da população brasileira não compreendeu a questão das cotas étnicas-raciais como método de reparação histórica dos erros cometidos pelo próprio Estado brasileiro. Assim, surgiu no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) número 186. Em suma, essa ação alegava a ofensa a determinados artigos da Constituição Federal de 1988, a maioria a serem descritos ao longo deste texto, por, segundo os comoventes da ADPF, ferir os preceitos de igualdade proferidos na legislação. A ADPF, por fim, foi compreendida como improcedente.
A princípio, visto ao que foi anteriormente exposto, os responsáveis pela alegação provém de uma ignorância frente aos conceitos essenciais para o estabelecimento dos direitos humanos: a distinção entre igualdade formal e igualdade material. É amplamente compreendido pelos estudiosos dos direitos humanos que há diferenciações entre o previsto na Constituição (igualdade formal) e a aplicação real (igualdade material). A partir disso, cabe ao Estado reconhecer esses abismos sociais para implementar medidas de reversão, a partir da conhecida frase: “É preciso desigualar para equivaler”. Ademais, sabe-se que o reconhecimento estatal é apenas alcançado após muita persistência dos movimentos sociais. Assim, pode-se falar do conceito de “Espaços dos Possíveis” desenvolvido por Bourdieu, evidenciando o direito como uma mera ferramenta que se move a partir das demandas sociais, sendo interligado à sociedade e dependente da mesma.
Em segundo ponto, os artigos apresentados como feridos encontram-se perfeitamente respeitados pela implementação das cotas étnico-raciais. O documento faz menção aos artigos: 1º, inciso III; 3º, inciso IV; 4º, inciso VIII; 5º, incisos I, II, XXXIII, XLI e LIV. Todos esses artigos da Constituição Federal dissertam, de algum modo, sobre preceitos de direitos fundamentais. O projeto instituído de cotas étinico-racial não descumpre qualquer princípio de dignidade humana e ainda corrobora com os ideais de promoção de bem-estar social de todos os cidadãos, previsto dentre esses artigos. Além disso, ainda há a contestação frente aos artigos: 37, caput; 205; 206, caput e inciso I; 207, caput; 208, inciso V. Esses referem-se ao direito à educação e os deveres do Estado em respeito a isso. Levando-se em conta o fato de que a ideia da obrigatoriedade das cotas étnico-raciais é ampliar o acesso ao ensino superior público, não há um descumprimento com os direitos fundamentais.
Por fim, a ADPF apresenta-se incabível frente a realidade de sociedade racista e de tantas desigualdades, sendo coerentemente julgada como improcedente. Faz-se necessário, então, o compreendimento da necessidade de expansão democrática como tentativa de ampliar os espaços para o acesso de todos a oportunidades. A mobilização social mostra-se extremamente importante nesses aspectos para a criação de mecanismos e técnicas para as demandas defendidas pelos grupos minoritários de fato cheguem ao poder público. Além do mais, o aumento do número de pretos nas instituições superiores de ensino reflete diretamente na elevação estatística de pretos reivindicando cargos altos no mercado de trabalho. 


ADPF 186: a busca por direitos em um país racista

O debate acerca da política de cotas étnico-raciais esteve em pauta já há alguns anos no cenário político brasileiro, permeando discussões sobre, principalmente, as igualdades formal e material, tal como as políticas de inclusão do período pós abolição da escravidão no Brasil. É inegável que a integração dos ex-escravizados na sociedade brasileira foi marcada pela carência de medidas efetivas e o abandono do governo para com essa população. Essa realidade contribuiu para o crescimento e a legitimação do racismo no país - em especial do racismo estrutural - o que proporcionou uma barreira ao povo preto para o acesso à cidadania, à política e, principalmente, a educação. 

Nesse contexto, tem-se a ADPF n°186, ajuizada pelo Partido Democratas (DEM) sob o pretexto de questionar a constitucionalidade da política de cotas étnico-raciais na Universidade de Brasília (UnB). Essa ADPF não aderiu à perspectiva do partido e julgou constitucional essa política. Contudo, mesmo após essa decisão, esse tema é muito recorrente em debates, no qual a oposição desenvolve argumentos baseados em visões meritocráticas e cegas à desigualdade material que assombra esse grupo. 

Nessa perspectiva, observa-se que os negros são, constantemente, vítimas da “violência simbólica”, conceito de Bourdieu que declara que a violência não é exercida apenas fisicamente, mas também moral e psicologicamente. Essa situação deve-se a um rígido habitus, no qual a classe dominante - composta pela população branca - enuncia um discurso extremamente racista que é reproduzido ao longo das gerações e que funciona como um mecanismo que assegura a alta posição dos brancos na hierarquia social por eles construída. Portanto, é mister que se recorra a uma historicização da norma, este também um conceito de Bourdieu, e que apresenta a importância de uma adaptação da norma às demandas sociais contemporâneas e às necessidades da população - principalmente quanto à garantia de direitos fundamentais. 

Em seguida, é possível evidenciar o pensamento de Garapon quanto ao papel do Poder Judiciário na decisão desse caso. Por mais que se pondere acerca da representatividade e capacidade dos membros desse poder para tomar decisões de cunho social e ligadas aos direitos de grupos minoritários, a negligência dos demais órgãos e poderes políticos e a omissão quanto ao debate refletem a essencialidade dessa ação do STF. Também a respeito da postura do Poder Judiciário, se destaca o pensamento do autor McCann, visto que este discorre sobre a mobilização do direito - processo de reivindicação de interesses, direitos, valores e princípios por grupos sociais - e a possibilidade de aumentar a relevância de um tema no meio político, jurídico e social. Assim, legitima-se a ocorrência da ADPF, posto que não se trataria de um ato de força ou de abuso do poder, mas de uma tentativa de assegurar direitos à população.

Finalmente, toma-se as ideias desenvolvidas por Sara Araújo para constatar a ideia da política de cotas raciais como uma reação ao modelo hegemônico. A autora pontua como há uma divisão mundial, na qual a epistemologia do norte há anos subjuga a cultura, a ciência e os indivíduos do sul, procurando impor seus valores como aqueles dominantes em âmbito internacional. Nesse viés, se desenvolve uma invalidação do sul pelo norte e a construção de monoculturas que colocam as características dominantes como as únicas válidas e promovendo uma invisibilidade do que não é por eles produzido. Em contrapartida a esses pensamentos, tem-se a ecologia do saber, que busca a promoção da pluralidade do conhecimento e da rejeição do universalismo abstrato, buscando uma horizontalidade e um direito “provincializado” e “desparoquializado”. Araújo, então, defende a construção de um direito amplo, inclusivo e que comporte “as lutas jurídicas que florescem na interlegalidade dos encontros jurídicos e nas lacunas do Estado”. 

Por fim, a constitucionalidade dessa sentença também se justifica com base no art. 5° da Constituição Federal, que prevê o princípio da igualdade material e no art. 206, incisos I, III e IV, que prevê que o acesso ao ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: “igualdade de condições para acesso e permanência na escola”; “pluralismo de ideias”; e “gestão democrática do ensino público”. Logo, sob esta análise, reconhece-se a importância da decisão final do STF na ADPF n°186 na luta contra o preconceito racial no Brasil, já que, ainda que representem a maioria da população brasileira, os negros são os que mais sofrem com a pobreza, a miséria, a fome, o desemprego e a dificuldade de acesso à cultura e educação no país. Essa realidade é consequência da falta de medidas governamentais que assistissem esse grupo desde o fim da escravidão, de tal forma que se percebe a existência de uma dívida histórica a ser sanada com essa população, em virtude da concretização do direito à dignidade humana que lhes compete.


Mariana Medeiros Polizelli 

1° ano - Matutino 

ADPF 186 e Construção Social

A ADPF 186, realizada pelo STF no ano de 2012 considerou, por unanimidade, constitucional a criação de cotas para acesso ao ensino superior na Universidade de Brasília, baseando-se, essencialmente, na universalização do direito fundamental à educação, no princípio da igualdade e da dignidade humana e o repúdio ao racismo. 

Coloca-se em evidência que, mesmo depois de 124 anos da abolição da escravidão, e 190 anos de país independente, ainda vivemos e vamos viver, por sabe lá mais quanto tempo, as cicatrizes de um sistema explorador de corpos, de morte, de terra e de cultura que foi a colonização.  

A ampliação de direitos na perspectiva que abordamos do momento histórico de legitimação da luta da população negra, promove o que Bourdieu aborda como historicização das normas, a adequação ao momento histórico em que elas se encontram e se fazem valer de maneira coerente e adequada às demandas daquele tempo e espaço.  

Dentro do espaço dos possíveis, podemos abordar como o poder simbólico de classes dominantes, não afetadas tem a decisão em plenas mãos e não se preocupam de maneira suficiente com a garantia da igualdade formal e material dessa população.  

A garantia das cotas, portanto, é questão de reparação histórica. Temos a obrigação de observar a igualdade na lei e a igualdade perante a lei, e ver se as duas estão no mesmo patamar. A abertura para a produção de um Direito mais completo e diverso, de expansão do saber, suprimindo cada vez mais a monocultura do saber vigente, e com isso, permitindo a ecologia do saber nas universidades, nos leva a começar a pensar em um país mais diverso, que aborde e não suprima as diferenças.  

Mesmo com a judicialização desse Direito e o voto levado pelo partido dos Democratas contra a decisão, percebemos a presença da magistratura do sujeito para a inserção dessas demandas sociais dentro dos tribunais e a necessidade de pleiteá-las.  

O racismo é presente na sociedade brasileira, e isso é um fato. Tanto um racismo institucional como estrutura, intrínseco nas relações do dia a dia. Mas garantir que o saber diverso vai estar dentro das universidades com seu espaço de desenvolvimento é apenas um pequeno passo (e alívio) na esperança de um mundo melhor.   

Helena Motta 
Direito noturno