sexta-feira, 14 de outubro de 2022

O Ativismo Judicial é um excesso de poder por parte do judiciário?


Durante o século XVIII, a Europa foi dominada pelo pensamento iluminista pautado na razão e na busca do equilíbrio. A ideia central das teorias consistia na limitação dos poderes para uma melhor harmonia social. Dentre esses critérios, é válido citar a teoria da tripartição de poderes de Montesquieu: judiciário, legislativo e executivo. A ideia era a instituição de um sistema de "freios e contrapesos" para adquirir certa autonomia aos poderes mas sem que se excedam as atividades, um contorno ao Absolutismo antes vigente. Esse ideal foi repassado para diversos sistemas políticos ao redor do mundo, incluindo o Brasil. Porém, por mais que haja a perpetuação desse sistema por tantos séculos, ainda há discussões em torno da influência de um poder sobre o outro. Assim, esse texto compete a discursar sobre o Ativismo Judicial, uma disputa entre os limites do poder judiciário e dos demais poderes.

Em primeira análise, é cabível argumentar sobre as competências do poder judiciário previstas pelo sistema brasileiro. Segundo o atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, Roberto Barroso, incube ao judiciário manter a força da Constituição Federal, fazendo-a valer em prioridade. Assim, torna-se função desse poder distinguir as legislações fundamentadas pelo legislativo e as ações do executivo como legítimas ou ilegítimas. Tal ação apresenta-se de modo a ser uma das expressões do poder constituído derivado praticado pelo judiciário e recai sobre a discussão em torno da terminologia Ativismo Judicial. Com isso, temos que a influência das ações do STF sobre medidas tais quais a ADI 4277, pautada em torno da decisão da união homoafetiva, é um reconhecimento de direitos já existentes apenas alterado sua interpretação para expandir o sentido de uma lei, exatamente a hipótese de mutação constitucional prevista por Barroso, ou seja, não se enquadra como uma sobreposição de poderes por parte do judiciário.

Num segundo ponto, é necessário compreender que o Direito não é uma ciência própria e autônoma, sendo, na realidade, um produto de uma complexa relação entre indivíduos imersos em uma determinada sociedade histórica, política e econômica. Assim, o Direito é fortemente influenciado pelo seu contexto social, tendo a função de regulamentar a boa vivência entre as pessoas.  A partir dessas elucidações, é válido trazer os ideais de Campo dos Possíveis de Bourdieu e da força política que compete ao poder judiciário de Garapon. Sobre o primeiro tópico, Bourdieu defende o ciclo de funcionamento político social que permeia o direito: os movimentos sociais trazem demandas e incitam um grupo contrário à causa, cabendo ao Estado solucionar tal conflito. Mas, por que essas demandas recaem sobre o judiciário e não ao legislativo, por exemplo? Sobre esse aspecto, abarcamos a ideia de Garapon. De acordo com esse autor, o judiciário deve utilizar do Ativismo Judicial para conseguir ampliar o acesso dos grupos sociais minoritários a conquistar seus direitos fundamentais básicos. Isso ocorre, em cenários tais quais o atual, nos momentos em que o poder legislativo não obtém a representatividade a qual é necessário para suprir os pleitos emanados por grupos minoritários. 

Logo, podemos compreender o Ativismo Judicial como uma expansão do exercício democrático, além de ser uma expressão do poder judiciário constituído, uma determinação prevista pela Constituição Federal. Por fim, tais medidas não deveriam ser vistas como uma usurpação de poderes ou uma exceção de limites que levam a sobreposição, pois, na realidade, tratam-se da primazia da função do judiciário: permitir a boa vivência entre os cidadãos tanto num âmbito individual quanto coletivo.


 O termo judicialização faz sentido? 

    No panorama atual, principalmente no que tange ao cenário político brasileiro, o Poder Judiciário está em evidência. Pode-se afirmar que esse poder ganhou mais evidência nas manchetes políticas a partir da prisão do ex-presidente Lula pelo juiz Sérgio Moro, em 2018, na qual esse magistrado foi considerado um verdadeiro cânone anticorrupção da política brasileira por vários setores da população. Então, paulatinamente, o Poder Judiciário foi ganhando mais atenção da sociedade brasileira, que antes configurava sua lente política para os Poderes Legislativo e Executivo. Importante destacar que esse destaque acontece através de um viés maniqueísta, em que alguns magistrados são considerados cânones, como Moro, e outros inimigos da pátria, como os Ministros  do Superior Tribunal Federal, STF. 
      Dessa forma, concomitante à inserção do Poder Judiciário no quadro político, os termos "ativismo judicial" e "judicialização" também ganharam espaço no vocabulário de muitos brasileiros. Ambos os vocábulos são entendidos sob uma perspectiva negativa pelos setores que traduzem diversas atuações dos Tribunais, principalmente do STF, como uma usurpação do sistema dos Três Poderes, já que, supostamente, os magistrados estariam exercendo atribuições que não os competem. Esse rol de atuações que são consideradas impróprias para o Poder em questão, não são nada mais que a o ato de guardar e defender a Constituição Cidadã na prática, o que inclui o resguardo à dignidade humana, por exemplo. Na presente análise concentrar-me-ei no termo "judicialização". 
      No que concerne à "judicialização", esta pode acontecer em variados campos, como a  da saúde, da educação, da moradia, entre outros. Todos esses exemplos são intrínsecos ao campo político e jurídico, como no caso da decisão jurídica do  fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Estado. Diversos grupos da sociedade brasileira, criticam esse tipo de deliberação e, argumentam que isso é ferir a Tripartição dos Poderes, pois esse ato seria, na verdade, a intimação do Estado pelo Judiciário. Ora, se a Constituição Federal prevê a dignidade humana, a saúde como direito de todos e dever do Estado - artigo 196 -, essa decisão jurídica não seria nada mais que Guardar a Constituição? 
    Ademais, cabe ressaltar que parte majoritária dos grupos que projetam o ato de judicializar como negativo, também encaram dessa forma diversos respaldos estatais tocantes ao bem-estar social, como assistências econômicas. Isto é, mascaram seus ensimesmamentos e ideologias neoliberais através de afirmações como: "o STF está legislando", "Judiciário mais uma vez tentando mandar no presidente". 
      Portanto, conclui-se que o termo "judicialização" faz sentido, pois o direito, aliado à política, está presente em diversos setores do cotidiano brasileiro. Entretanto, a atitude de judicializar faz sentido sob o viés positivo de guardar a Constituição e garantir direitos já previstos nessa, porém constantemente negligenciados, e não a partir do entendimento negativo de que o Judiciário estaria rompendo com a Tripartição dos Poderes. 

Bárbara Canavês Domingos. Direito Noturno