sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Ativismo judicial à luz da moral dos conflitos sociais: da tutelarização do direito ao maior controle do juiz.


A luta da comunidade LGBTQIA+ pelo reconhecimento de direitos vem ganhando cada vez mais força na contemporaneidade, essa prerrogativa evidencia uma importante questão acerca do descontentamento individual que não encontra respostas no direito já positivado; como resultado, o judiciário aparece como amortecedor frente aqueles que querem exercer o direito de maneira direta, causando, assim, o famigerado ativismo judicial intrinsecamente mobilizado por grupos como o mencionado, entendido por Garapon, como um fato político social, ou seja, indo da sociedade para os tribunais.

Tal fator pode ser presenciado essencialmente nas últimas décadas, haja vista a busca em assegurar de fato os direitos positivados como a liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana, que para Bourdieu seria “o direito de dizer o direito”. Logo, fica evidente que as sociedades modernas, segundo Garapon, geram na realidade uma demanda de justiça qualitativa e quantitativa inédita, ou seja, trata-se de uma demanda de massa. 

Nessa mesma linha de raciocínio, é possível observar o papel relevante do habitus, o que para Bourdieu representa uma matriz cultural que predispõe os indivíduos à certas escolhas e a determinados comportamentos, os quais movimentam os indivíduos no decorrer de sua vida, neste caso, a incorporação de uma nova constituição de família que influenciam o agir em sociedade. É esse o ponto principal para entender o momento presente e suas exigências de mudanças, tendo em vista que uma sociedade complexa para Garapon, é regida mais pelos homens do que por uma regulamentação sofisticada, ou seja, a incapacidade de exercer a autoridade social normal se traduz por um aumento de influência da justiça sobre certos comportamentos que antigamente dispunham de outras maneiras de regulação.   

Essa conjuntura reflete, por exemplo, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277, que trata sobre o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, a qual foi relatada pelo ministro Ayres Brito, que interpretou o conflito entre o art. 226 da Constituição, o qual aduz acerca da família, ser a base da sociedade e o fato do  Estado ser responsável pela proteção e promoção dos direitos fundamentais, à luz da teoria dos deveres de proteção; e o art. 1723, que reconhece como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher. Logo, essa discussão apenas mostrou-se viável tendo em vista o papel dos movimentos sociais e não uma ação autônoma do judiciário. 

Diante do exposto, cabe mencionar, que a discussão do tema foi viável,  pois encontra-se dentro do espaço dos possíveis, haja vista a manifestação dos Tribunais de Justiça Estaduais (Acre, Goiás, Rio Grande do Sul) em favor da equiparação entre a união estável heterossexual e a união homoafetiva, ou seja, não é algo que está aquém dos interesses da justiça, mas sim uma discussão presente em outras instâncias. O espaço dos possíveis também se manifesta diante dos artigos da Constituição, haja vista que o art. 226 ao não especificar o que é considerado família contribui para que qualquer composição familiar seja considerada na sociedade, haja vista o entendimento de que caracteriza-se como “uma instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica”. 

Assim como é aludido pelo ministro Luiz Fux, o qual expõe que, “a garantia institucional da família, insculpida no art. 226, caput, da Constituição da República, pressupõe a existência de relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os membros, bem como a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum e a identidade de uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade”. Logo, o conflito com o art. 1723, foi entendido mediante a ADI como um conflito aparente, uma vez que o Código Civil, deve ser interpretado no mesmo sentido da lei maior. 

Convém mencionar que o não reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar lesiona os preceitos fundamentais da Constituição, notadamente aos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), da vedação à discriminação odiosa (art. 3º, inciso IV), e da igualdade (art. 5º, caput), da liberdade (art. 5º, caput) e da proteção à segurança jurídica, os quais violam direitos de indivíduos que vivem sob orientação sexual minoritária e alvos de críticas do conservadorismo social. Entretanto, a homossexualidade é uma orientação sexual e um fato de vida, e não uma opção sexual; um indivíduo é homossexual simplesmente porque o é, e não uma manifestação de ideologia e crença intrinsecamente instaurada no imaginário da sociedade.   

Os homossexuais, portanto, “constituem entre si relações contínuas e duradouras de afeto e assistência recíprocos, com o propósito de compartilhar meios e projetos de vida. ” e cabe ao Estado e ao Direito assegurar o desenvolvimento da personalidade de todos os indivíduos, permitindo que cada um realize os seus projetos pessoais, ou seja, não há qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade no estabelecimento de uniões homoafetivas. 

Alude, portanto, que, além do campus científico, o campus social brasileiro também sofreu transformações nos últimos anos desde a elaboração do Código Civil, evidenciando que o tempo e as coisas não param e o direito não possui  uma autonomia absoluta, mas sim relativa, a qual deve acompanhar as mudanças presenciadas no campo social e invocar historização da norma condizente com as demandas atuais, ou seja, abranger a união homoafetiva como entidade familiar. Logo, é preciso universalizar o direito, isto é, nas palavras do ministro Ayres Britto,  deve-se considerar que “diferentemente do casamento ou da própria união estável, a família não se define como simples instituto ou figura de direito em sentido meramente objetivo. Essas duas objetivas figuras de direito que são o casamento civil e a união estável é que se distinguem mutuamente, mas o resultado a que chegam é idêntico: uma nova família”.

Ao não encontrarem respaldo em campos diversos do direito, a comunidade LGBTQIA+ segundo Garapon, encontra na tutelarização do direito o maior controle do juiz, preço este a ser pago pela liberdade almejada, ou seja, a magistratura do sujeito se manifesta justamente ao delegar que a justiça tutele as formas de sofrimento, uma vez que “intima a democracia a inventar maneiras de resolver conflitos e de proteger os indivíduos frágeis. Desse modo, os grupos vulneráveis precisam se apoiar em movimentos sociais, uma vez que há uma crise de representatividade político-partidária dessas minorias, as quais encontram no judiciário o meio utilizado para dar voz às suas necessidades.   

Nesse âmbito, a presente Ação Direta de Inconstitucionalidade analisada trata exatamente da busca pelo reconhecimento de direitos acerca da união homoafetiva como entidade familiar, aqui, pode-se observar a transformação do direito na moral por ausência, tendo em vista falta de outros meios que viabilizassem tal reconhecimento, pois, o Estado, passível de mudança ao longo da história, encontra-se cada vez mais permeado por atividades reguladoras da vida social, isto é, sofre influência de um grupo de indivíduos conservadores que não permitem a constituição familiar diferente da tradicional.  

Diante do supracitado, enseja apontar o julgado diante de outro ponto de vista, o qual segundo a socióloga alemã Ingeborg Maus, “os movimentos sociais de base democrática acaba por convergir com “os mais altos interesses do próprio aparato judicial”, contribuindo com a auto reprodução do Judiciário para além de suas competências constitucionais”. Isso está intrinsecamente relacionado à ideia de estímulos sociais que contribuem para a expansão do próprio campo de ação da justiça, o que “passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social - controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática”. Para a autora, há um infantilismo dos tribunais em questões referentes à cidadania , uma vez que há pouca frequência nos próprios comportamentos eleitorais sobre as exigências de justiça social. 

Ademais, pode-se observar que há uma antecipação na decisão expressa do julgado, não apenas pela pressão de uma comunidade com relevância significativa no campo social, mas também, pelo fato da própria Constituição não denominar apenas homem e mulher  como entidade familiar e deixar explicitamente em seu artigo 5º, inciso XLI, sobre: "a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais”, isto é, havia uma antecipação dentro so próprio texto constitucional. Entretanto é relevante observar que o direito pertence ao amanhã, tendo em vista que não há uma antecipação ou garantia prévia do Estado acerca da justiça, uma vez que as leis sempre são permeadas pelo anseio social. 

Logo, fica claro, portanto, que, embora existam controvérsias acerca da atuação do judiciário em relação às questões levantadas por movimentos sociais como no caso da comunidade LGBTQIA+, é inviável falar sobre ameaça à democracia, mesmo havendo um deslocamento da agenda do país do legislativo para o Judiciário. Isso decorre, primeiramente, da judicialização ou do ativismo judicial não ser algo que ganha vida própria, mas sim decorre de vontade popular caracterizada como um fenômeno social; em segundo lugar, existe um fundamento normativo, que, para Barroso “ao aplicarem a Constituição e as leis, estão concretizando decisões que foram tomadas pelo constituinte ou pelo legislador, isto é, pelos representantes do povo”, e por último, há a autocontenção, que garante a não aplicação da Constituição em casos que não estejam no âmbito de incidência do judiciário.  


Natália Lima da Silva 

Turno: Matutino, 1º ano de Direito. 

 


A luta pela efetivação de direitos, assegurar o espaço dos possíveis ou ativismo judicial?


  O julgado da ADI 4.277, versa sobre uma questão ainda latente na atualidade: o reconhecimento de direitos para a união homoafetiva. Tal conflito chegou ao STF por meio do pedido da ABGLT (Associação Brasileira de Gays Lésbicas e Transgêneros) que vivendo em um país extremamente repressivo, preconceituoso, no qual os índices de violência contra a comunidade homoafetiva se assemelham a países islâmicos-locais em que a homossexualidade é expressamente proibida- possuem direitos fundamentais, como o direito à vida, à saúde, a integridade física, restringidos todos os dias por conta das agressões tanto verbais quanto físicas. A comunidade LGBTQIA+ não possuía garantias jurídicas nem para existir com segurança, consequentemente, muito menos para ter garantido o caráter de união estável a seus relacionamentos, mesmo que esses sejam análogos aos heteronormativos. Seus integrantes lutavam, e infelizmente, ainda lutam para existir em paz, para poderem andar na rua sem medo da violência, que tenta os coagir a não expressar sua sexualidade. É nesse contexto que a ABGLT, pleiteando que o conflito presente no campo social fosse transposto para o campo jurídico, e desse modo, pudesse assegurar, para a população homoafetiva que direitos, já há muito assegurados para a população heteronormativa, logo existentes no espaço dos possíveis, só não reiterados para essa comunidade que ainda carece de proteção jurídica, fossem efetivados. 

Tal questão chega ao campo jurídico pela demanda popular, desconfigurando o que alguns denominam de ativismo judicial, já que a Suprema Corte do país foi instigada a tratar do tema após essa mobilização social. O direito foi provocado pela população que sem amparo algum precisou recorrer ao campo jurídico, tendo em vista que a questão é negligenciada no âmbito legislativo, obrigando sua migração para o Judiciário, o que foi denominado por Antoine Garapon de magistratura do sujeito, pois busca-se o direito mediante a crise da representação política, a qual mostrou-se como causa para a omissão legislativa sobre pautas de minorias. A efetivação de direitos existentes no espaço dos possíveis, mas destinados a grupos marginalizados, tem sido algo infactível no Brasil atual, e a mobilização do STF para debater acerca do reconhecimento de direitos à união homoafetiva é um retrato dessa tentativa do campo social em afirmar o que é dado pela própria Constituição Federal como espaço dos possíveis.   

No entanto, isso não se dá de maneira natural, uma vez que grupos contrários, movidos pelo habitus heterossexual buscam a perpetuação de seus costumes, e sendo assim se posicionam de forma contrária a equiparação de união heteronormativa a uma homoafetiva, grupos esses que até então tinham seus interesses assegurados inclusive pela perspectiva jurídica, tendo em vista que durante muito tempo possuíram o direito de dizer o direito, e assim o fizeram. Como consequência, seus ideais foram aqueles que ditaram as normas, isso, de certo modo, até justifica a dificuldade de pautas como essa chegarem as instâncias legislativas, pois são ignoradas pela maioria dos parlamentares que se encontram dentro desse habitus homofóbico, o qual se recusa a assegurar direitos para a comunidade homossexual, se pautando, principalmente, no artigo 226 o qual estabelece a união estável, como relação entre homem e mulher. Argumentando contra isso, o ministro Ayres Britto, mostra que o expresso no artigo o está, justamente, para combater esse ideário patriarcal que desigualava o homem e a mulher dentro do relacionamento, a redação foi realizada com o intuito de proteger a autonomia da mulher dentro da relação, evidenciando que ambas as partes estariam em caráter de igualdade. Tendo isso em vista, é inviável pautar-se nesse argumento para vedar a constituição de união estável entre pessoas do mesmo gênero. 

Tais fatos evidenciam que mesmo inseridos em um contexto majoritariamente averso a consagração de direitos para uniões homoafetivas, o STF entendeu que os direitos destinados a união heterossexual deveriam sim ser transpostos de modo equânime a união entre pessoas de mesmo sexo. Baseando a decisão na interpretação da Constituição Federal que veda o preconceito em seu artigo 3°, inciso IV, nos princípios da dignidade da pessoa humana (art.1°, inciso III), na liberdade sexual que constitui também a autonomia da vontade, na proteção da intimidade e da vida privada (art.5°, inciso X) e na interpretação que a definição de família não poderia ficar reduzida a casais heteros sob pena de violar os princípios supracitados, e entendendo que o todos possuem o direito subjetivo de constituir uma família. A referida decisão protege o ideal democrático de respeito a pluralidade social, política e cultural e fornece previsão legal para que a democracia seja exercida pelos cidadãos de forma mais igualitária, já que essa parte da população que era discriminada e impedida de exercer direitos assegurados a casais heteros em questões fundantes como as previdenciárias, as relacionadas a moradia e saúde. Após a ADI, foi conseguida a equiparação de direitos a todas as formas de família, desse modo, é notável o avanço a um caminho para uma maior igualdade material entre esses grupos diversos, o que proporciona a aplicação, na realidade, de preceitos democráticos, pois é sabido que o poder econômico interfere na possibilidade de exercício da cidadania. 

Com isso, percebe-se que a ocorrência da ADI 4.277 exemplifica também, o conceito de historicização da norma, cunhado por Pierre Bordieu, mostrando que essas devem estar de acordo com a realidade atual, precisam estar equiparadas com o tempo histórico em que são aplicadas, não é possível que a legislação seja imutável frente a tantas lutas e mudanças existentes na sociedade, todo esse julgado demonstrou como expressões com sentido amplo e vago puderam ser aplicadas concretamente pelo tribunal, e direcionadas a sociedade atual, através da interpretação da Constituição pela Suprema Corte. 

Em suma, a decisão tomada pela concessão de direitos a união homoafetiva e sua caracterização como união estável, foi alcançada por conta da demanda popular, o judiciário foi instigado a atuar devido a movimentação do campo social que o mobilizou, reiterando direitos já previstos pela Constituição. Desse modo, o Judiciário atuou dentro de suas competências ao atender a população que o acionou por conta da omissão legislativa acerca do tema, desconfigurando o que alguns denominam de ativismo judicial (abuso da prerrogativa por parte do Judiciário), já que somente foi assegurado a comunidade LGBTQIA+ direitos que já se encontravam no espaço dos possíveis, uma vez que eram previstos para casais heteronormativos. 

Marina Cassaro