segunda-feira, 28 de março de 2022

A divisão cartesiana do conhecimento, de fato a melhor forma de construção da ciência?


A forma de se fazer ciência e de construção do conhecimento foi algo amplamente debatido ao longo da história humana. Dois dos mais ilustres métodos científicos propostos foram os de Rene Descartes e Francis Bacon, ambos tinham como preceito uma quebra com filosofia tradicional e a utilização do saber para fins práticos, o primeiro ignorando a participação dos sentidos, já o segundo acreditava que os sentidos auxiliariam no saber. Apesar de ambos métodos serem muito utilizados no mundo moderno são passiveis de críticas, uma delas é feita no filme Ponto de Mutação no qual é evidenciado os problemas da divisão e da mecanização extrema do conhecimento.

É evidente a importância da metodologia para o fazer científico, a partir de estudos que visavam uma transformação do ambiente natural foi possível o desenvolvimento de tecnologias que de fato melhoraram as condições de vida e permitiram um maior entendimento da natureza e sua manipulação em prol da humanidade. Sem os métodos científicos pautados na razão provavelmente não haveriam tantos avanços nas ciências já que antes de sua elaboração a construção de conhecimento era voltada apenas para a contemplação.

Entretanto, é ingenuidade acreditar que os avanços da ciência foram estritamente benéficos para a sociedade. Com a divisão extrema das áreas do saber perdeu-se a visão do todo e a falta de contemplação leva a humanidade para um caminho com consequências inexoráveis. Os indíviduos vislumbrados com o progresso tecnológico deixaram de olhar o planeta como um sistema integrado e esqueceram que os danos causados pela transformação intesa do meio ambiente serão sentidos pela humanidade talvez de maneira tão abrupta que o ritmo de transformação e consumo precise ser diminuído drasticamente.Desse modo, pode-se enxergar que essa divisão utilitarista do conhecimento voltada para o uso dos recursos naturais quando aplicada sem a presença de ideias da filosofia clássica voltados para a contemplação dos recursos utilizados não se concretiza como uma forma muito benéfica de construção científica, tendo em vista que leva a um consumo predatório o qual ameaça a perpetuação da espécie humana.


O sumiço da Sétima

     Em princípio, vamos esclarecer que este é um caderno de anotações referente à minha pesquisa pessoal de avaliação do sumiço da sétima mulher trabalhadora da fábrica no quarteirão de minha rua. Começaremos em um ponto mais primordial: sou escritor, um velho escritor acostumado com o funcionamento mecânico de meu cotidiano. Todos os dias, ao raiar do sol, sento em minha varanda com uma xícara de café e vigio o pequeno movimento em minha rua: as mesmas sete mulheres proletárias, com suas proles em uma mão e as marmitas na outra. Porém, certo dia, assistindo a essa travessia matinal, notei o desaparecimento de uma delas, a mais nova delas.

    Assim, chegamos a problemática dessa pesquisa: o sumiço da sétima. Com isso, trago aqui as considerações iniciais para o maior entendimento dessas anotações. Em primeiro ponto, decidi utilizar do método cartesiano pois pretendo chegar em uma única verdade absoluta e concreta, sem desvios de respostas ou espaços para mais dúvidas; mas também aderi ao modelo por possuir apenas um instrumento de pesquisa, aquilo que separa os homens dos demais animais: a razão universal. Em segundo ponto, essa análise leva em conta três diferentes ambientes aos quais chamaremos de universo: o universo expandido minha rua (i); o universo intermediário fábrica (ii); e o universo reduzido minha mente (iii).  A partir dessas considerações, seguiremos aos levantamentos obtidos.

    Segundo o método de Descartes, toda pesquisa inicia-se a partir da observação. Por mais que haja a crença de que os sentidos enganam nosso raciocínio e nos negam a descoberta da verdadeira razão, permito-me acreditar naquilo dito por meus olhos: a sétima mulher está ausente do primeiro universo (minha rua). Noto, também, que tal fato leva a ausência dela no segundo universo (a fábrica). Porém, ao observar o terceiro universo, o mais reduzido de todos (minha mente), constato sua presença em minhas memórias e questionamentos.

    A partir disso, vamos ao próximo passo da construção do método científico: a formulação de hipóteses através do uso da razão. Quais acontecimentos levariam uma jovem mulher a abandonar sua rotina e seu sustento? Estaria ela doente ou apenas conseguiu condições melhores de trabalho em outro lugar? Como explicar o sumiço em apenas duas instâncias de observação (o universo expandido e o intermediário), mas sua forte presença no meio reduzido (minha mente)? Transformemos essas ideias em algo mais concreto e passível de uma análise: caso ela esteja doente ou impossibilitada de trabalhar, voltará em breve e continuará presente em todas as instâncias; caso ela tenha se mudado, se ausentará instantaneamente  de dois universos (minha rua e a fábrica) enquanto sumirá aos poucos do terceiro (minha mente).

    Após quatro meses do desaparecimento da sétima, trago aqui minhas constatações sobre a continuidade do funcionamento de cada universo. Por apenas o tempo poder trazer respostas às minhas duas hipóteses, procurei validar a terceira etapa do método científico a partir da averiguação dos meios de estudos - os três perderam um elemento em comum.  A minha rua continuou por funcionar normalmente, as demais mulheres com seus filhos e marmitas cumpriam o mesmo trajeto todas as manhãs sem demostrar nenhuma falta da sétima. A fábrica também prosseguia suas atividades, notada pela emissão de poluentes da chaminé e pelo entra e sai dos funcionários, a retirada de um membro parece não ter alterado produtividade. Já minha mente obteve um grande empecilho em sua habitual programação. Não observar pela manhã as sete mulheres juntas gera um aparente atrapalho do funcionamento por fazer emergir uma série de questionamentos e dúvidas: a razão inerente ao homem.

    A paz de minha mente veio após 6 meses do sumiço da sétima com o total antagônico da situação: a retomada da presença das sete mulheres com a prole e as marmitas. Porém, em distinção das demais ocasiões, a sétima andava agora com uma pequena criança em seus braços. Assim, não noto apenas a validação de minha primeira hipótese como registro uma alteração no segundo campo de estudos (a fábrica). Concluo, por fim, encerrando minha pesquisa, que a utilização do método científico acaba por me obrigar a tratar situações extremamente humanas e cotidianas em algo robotizado para obter uma análise; retirando toda a subjetividade presente nas relações interpessoais inerente ao homem. Em uma consideração final, como um velho membro da literatura, exijo-me concordar com os versos de Jorge de Lima:

"Mulher proletária — única fábrica

que o operário tem, (fabrica filhos)

tu

na tua superprodução de máquina humana

forneces anjos para o Senhor Jesus,

forneces braços para o senhor burguês."

O Faisão Azul

Diário falado de pesquisa do Dr. Prof. José Batista Batista; Dia 19 da Comissão Organizada de Pesquisa Amazônica (COPA) edição XXIII; Gravação 1ª: 


‘Me encontro mais um dia adentrado nessa floresta densa e sem fim. Meus companheiros de pesquisa já não os vejo. Acho que me perdi deles a uma ou duas horas atrás, meu relógio está quebrado. Mais e mais espécies de folhagens e árvores típicas da Floresta Amazônica compõem o cenário desta descoberta: uma espécie de faisão ainda não catalogada. A ave tem em torno de 50 centímetros de comprimento e certamente não possui adaptação ao voo. Suas pernas e pescoço compridos, o fato de estar neste momento se alimentando de uma fruta suculenta que caiu de uma árvore e não ter alçado voo desde o momento que a encontrei confirmam minha teoria’. 


Diário falado de pesquisa do Prof. Batista; Dia 19 da COPA XXIII; Gravação 2ª: 


‘Minha teoria estava equivocada. O Faisão Azul, como estou o chamando nesta aventura de pesquisa, bateu as asas e voou em minha direção, quase que me leva um dos olhos. Meus sentidos e observação me enganaram, acho que tenho de ser mais perspicaz quando reencontrá-lo, já que o perdi de vista na mata’. 


Diário falado de pesquisa do Prof. Batista; Dia 19 da COPA XXIII; Gravação 3ª: 


‘Reencontrei o Faisão Azul, e para minha alegre surpresa ele não estava desacompanhado. Nosso encantador animal está neste momento no meio de um ritual de acasalamento, pelo que me parece. Em cima do galho de uma árvore está a fêmea parada observando o macho. Ele pula de galho em galho ao redor dela, com suas penas azul-turquesa reluzindo à luz do sol. Ele emite sons agudos e altos, e aparenta ser uma das mais leves aves que já vi, porque age com destreza ao se movimentar entre as plantas enquanto encanta a fêmea’. 


Diário falado de pesquisa do Prof. Batista; Dia 19 da COPA XXIII; Gravação 4ª: 


Me envergonha admitir que mais uma vez me encontro enganado sobre minhas percepções. Completamente enganado. O nosso caro Faisão Azul do primeiro encontro, que quase me deixou cego, depois de muito tempo cortejando e dançando para conquistar a outra ave, desceu com ela das árvores em direção ao solo. Ao pousarem no chão, o barulho feito com suas pernas e garras foi tão alto que fez com que minha teoria de serem aves com peso leve caísse por terra. Ainda por cima o “macho” da espécie, que estava a cortejar a outra ave, na verdade era a fêmea. Percebi tal fato quando os animais começaram a cópula à sombra de uma grande folha que bloqueava a luminosidade solar. É aí que entra a pior parte. Era a primeira vez que eu os observava fora da luz do sol. E nossa cara e recém descoberta espécie de Faisão Azul Amazônico, não era azul. A luz que batia em suas penas fazia com que reluzissem, revelando a coloração azulada, porém os animais eram bege, um marrom bem comum, o que me entristeceu e intrigou ao mesmo tempo’. 


Diário falado de pesquisa do Prof. Batista; Dia 20 da COPA XXIII; Gravação 1ª: 


‘Depois do episódio de ontem, consegui localizar meus companheiros de pesquisa e retornamos à nossa base de catalogação. Hoje me encontro registrando a espécie que certamente teve o prazer de me enganar. Ao redigir minha pesquisa, as descrições quase me tiraram uma gargalhada: uma ave que aparenta não voar e ser relativamente leve, mas que voa e possui grande força, apesar de ser tão ágil quanto um animal de porte bem reduzido; possui coloração azul até encontrar uma sombra, onde o sol já não reluz em suas penas e se torna bege; além disso, quem corteja na dança de acasalamento é a fêmea da espécie, o que me fez descontruir alguns pensamentos errados não somente sobre o reino animal mas também sobre o ser humano. Termino este diário de pesquisa contando-lhes o nome que concebi a este curioso animal: Phasianus Franciscus Bacon, latim para Faisão Francis Bacon’. 


Henrique de Carvalho - 1º ano de Direito

É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?

Os trabalhos de René Descartes marcam uma transição na História da ciência e do pensamento humano, inaugurando uma visão mecanicista da realidade com seu método. Seu pensamento analítico está impregnado em tudo que se seguiu, resultando em uma visão que categoriza e divide a realidade/natureza em partes que contém o todo. A visão racionalista e dualista cartesiana foi responsável pela divisão entre mente e corpo, possuindo implicações seminais na transformação gradual do imaginário moderno.  

Outro construtor da modernidade é Francis Bacon, com sua visão empirista de apreender a realidade, cuja perspectiva de domínio da técnica e controle da natureza, conferiu a “licença” necessária para a manipulação da natureza e sua exploração. Ambas contribuições se provaram extremamente úteis no desenvolvimento e domínio de técnicas basilares para a expansão capitalista, assim como serviram de arcabouço teórico para a ascensão de uma nova classe, a burguesia. 

Essa expansão do mundo da técnica e da utilidade culminou, em última instância, no modo de vida e produção que temos hoje. Em que cada aspecto da vida humana é metrificado, dividido, algoritmizado, em que buscamos utilidade e função em tudo, sendo sua expressão paroxística o neoliberalismo.  

O Filme “Ponto de mutação” de Fritjof Capra discute uma alternativa, apresentando uma visão sistêmica e interdependente de apreensão dos fenômenos naturais e sociais. O autor postula que todo o mal-estar da civilização atual é referente a uma crise de percepção causada pelo modo mecanicista de lidar com a realidade.  

Em face dos argumentos apresentados pelo autor, é notório que vivemos em uma crise do sistema de produção capitalista. Em que a questão ambiental e de produção é vista como um enfeite retórico no discurso político, e não como uma questão que verdadeiramente ameaça nossa existência no planeta. Chegamos ao “ponto de mutação” em que, ou pensamos seriamente em uma sucessão a esse sistema ou sucumbiremos com ele. 

Luiza David F. Neves - 1º ano Direito – Matutino – Turma: 39