segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Tempos de pandemia

                                            Marcela Helena Petroni Pinca


Em tempos sem tempo

nosso tempo não é nosso:

mercado.

Que adentra

nossas casas e

nos algema

à telas

sem elas,

é não instantâneo

é desperdício

é não trabalho.

Hoje,

mais claro do que nunca,

nossa vida é apenas

trabalho.

E não ganho

porque já é demais

ter um trabalho

em meio a pandemia

já é demais não

poder fazer hora

éxtras ou êxtras (sons)

chame-as de a mais

e a mais e a mais e a mais

e sono a menos

e estresse a mais

e compulsão a mais

e cuidado a menos.

E como

quer ter um emprego

se não trabalha

como quer dizer que

trabalha

se não inova.

Mude.

dentro de casa

Mude.

pra fora de casa

mas trabalhe.

Pois o tempo

nunca passou tão rápido

e você o está perdendo

como está perdendo

a si

mesmo

seu emprego

seu salário.

Salafrário, trabalhe.

Tempo é dinheiro.

Quanto tempo

e dinheiro

eu não desperdiçaria

se entendesse que você.

Descansa.

Me dê outras

horas

minutos

segundos

éxtras ou êxtras (sons).

E gaste menos

com você,

empregado.

Empregue e

empreenda e

verá que:

tempo é dinheiro.


Marcela Helena Petroni Pinca é mestranda em Direito na UNESP/Câmpus de Franca.


Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair

              O carioca, Chico Buarque, filho de um dos ícones da história e da sociologia brasileira, Sérgio Buarque de Holanda, por volta da década de 70 do século XX reinventa a música popular sob a égide do tropicalismo. A música, Construção, que dá nome a um de seus álbuns de maiores sucesso remonta a estrutura da sociedade capitalista em desenvolvimento. O Brasil da segunda metade do século XX caminha lentamente para a modernidade. Os gritos do progresso alcançam a América. A racionalidade impera sobre as condutas humanas. A moral é laboriosa e o trabalho é fragmentado.

Chico em sua canção narra a trajetória da vida de um trabalhador inserido nesta sociedade. Ao trabalhador em questão, não é atribuído nem ao menos um nome. A crítica desenvolvida na música, diz respeito a complexa alienação dos trabalhadores, que reflete na forma de organização social, isto é, por razão de toda estrutura do trabalho desenvolvida na pós modernidade juntamente com os imperativos do capitalismo possibilita a diluição do trabalhador e consequentemente sua alienação ao mundo do trabalho.

“(...) E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público.”

O fragmento mencionado acima, sintetiza a crítica contida em sua obra. A construção da ideia de que o indivíduo, é descartável é apresentado em diversas partes da música. Porém, no momento de sua redenção, no momento que o trabalhador está agonizando no chão preste a partir deste mundo, sua maior contribuição é atrapalhar o trânsito. Assim, apresentar os seres como reprodutores massivos de uma sociedade do trabalho, no qual nem ao menos importa quem são, ou o que fazem desde que não atrapalhem o fluxo natural da sociedade em desenvolvimento é de extrema sagacidade, pois ao trabalhador que nem ao menos lhe é atribuído uma identificação a sua morte é tão descartável como toda sua vida. Nesse sentido, o corpo social que se molda a partir da introdução do capitalismo do século XX é cada vez mais fragmentada e individualista na qual o altruísmo se torna mera utopia e a identidade uma simples miragem.

            Assim, o ser humano colocado em uma obra, como uma peça, que busca constantemente reproduzir a incansável homogeneidade do século XX é  símbolo da destituição do ser em detrimento do trabalho, no qual semelhante a um tijolo de uma construção qualquer, os indivíduos perdem suas características afim de ressoar os ritos da sociedade capitalista. Tudo se torna mercadoria e desta mercadoria, tudo converge para a diluição do indivíduo em seres que trabalham.

Sugestão de música: Construção - Chico Buarque (1971)

Rafael Bronzatto | 1º Direito Matutino UNESP