sábado, 5 de outubro de 2019

Luta: imperativo de sobrevivência.

O preconceito que se abriga nos lares e nas consciências individuais expõe-se violentamente em diferentes formas de agressão distribuídas gratuitamente aos indivíduos que manifestam sua sexualidade de maneira diversa da preconizada pelo discurso heteronormativo. O filme Madame Satã (Karim Ainouz, 2002), ambientado na primeira metade do século XX, exprime fielmente este cenário de permanente luta enfrentado pelos homossexuais em uma sociedade circunscrita  pelo preconceito, pela discriminação e pelos crimes de ódio, dos quais essa categoria, fatal e infelizmente, muitas vezes não consegue escapar. Sobre o personagem principal, João Francisco dos Santos, que faz referência a história real do pernambucano homônimo que viveu no Rio de Janeiro no século passado, recaí triplamente o peso desse fardo de desigualdades, sendo ele homossexual, negro e pobre.
Essas circunstâncias permanecem atuais, ao desempenhar o papel de amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão relativa à criminalização homofobia, ajuizada pelo Partido Popular Socialista, o Grupo Gay da Bahia-GGB explanou  os números da violência recebida pelos homossexuais e transexuais no Brasil, o país que mata mais homossexuais ainda se comparado aos países onde se verifica pena de morte para tais. Torna-se evidente que a homofobia e a  transfobia se concretizam em diferentes tipos de agressão que abrangem desde de xingamentos até lesões corporais mais graves, assassinados. No filme, que se distancia das representações estereotipadas de personagens homossexuais, estas violências recaem  sobre o João Francisco dos Santos, ele simboliza identidades e minorias marginalizadas, sendo negro e homossexual tem sua trajetória assinalada pela batalha permanente pela sobrevivência, dentro da qual atua também como agente de uma violência, única forma encontrada por ele para responder às humilhações que recebe diariamente.
Em  uma sociedade que prega a heterossexualidade como norma é preciso dar visibilidade aos que fogem a essa  regra, dar voz às suas mazelas e ouvi-las, criar ressignificações e enfrentar o imaginário preconceituoso hegemônico, admitir os seus discursos e, assim, propiciar o reconhecimento da existência social desses indivíduos, os quais atuam e são os agentes direitos e ativos dessa necessária substituição de valores ultrapassados. Independente da estratégia utilizada, o que realmente é importante são os resultados obtidos, quer seja por outros meios ou  pela mobilização do direito, como nesta ADO, que, fundamentando-se na Lei Máxima brasileira, defendeu a criminalização de todas as formas de homofobia e transfobia, ou por se enquadrarem no conceito de racismo, em sua concepção social, ou, ainda, pelo fato de tais atentados violarem os direitos e liberdades fundamentais garantidos pela Constituição, buscando, também, o reconhecimento da inércia do Legislativo na aprovação de leis referentes ao tema, alcançando sucesso em suas reivindicações. O reconhecimento das demandas  desses grupos minoritários pelas instâncias judiciárias coloca em xeque sua histórica vulnerabilidade jurídica, propiciando a reafirmação de suas existências enquanto sujeitos de direito operantes dentro de um tecido social.
 Esse espaço de desigualdades e preconceitos é um ambiente marcado pelo conflito, a luta torna-se  instrumento de resistência necessário diante das violências e humilhações. É preciso superar o papel de subalternidade imposto a essa classe, os estereótipos integrados à mentalidade social reinante, como bem claro o Grupo Gay da Bahia exemplificou ao expor que há, por mais absurdo que possa aparentar, a associação da homossexualidade à pedofilia e às outras práticas sexuais, moral  e criminalmente reprovadas, além da presença de obstáculos na concretização de determinados direitos aos homossexuais, que aos heterossexuais são espontaneamente oferecidos, como o casamento, adoção, doação de sangue, estabelecidos diante de um moralismo reiterado.

O ambiente de pobreza e violência representado no filme, portanto, retrata com propriedade as experiências do indivíduo que em uma sociedade preconceituosa é atingido pelos ataques à sua sexualidade, raça e conjuntura socioeconômica, com isso o personagem representa o conjunto de toda uma categoria de indivíduos que historicamente recebem o fardo de discriminação e intolerância despejados sobre eles, reiteradas por  representações estereotipadas de suas atitudes que não representam a realidade, que podem ser observadas dentro de uma estrutura heteronormativa na qual a homossexualidade é enxergada como um "comportamento desviante", e os homossexuais como nocivos e prejudiciais à sociedade. Nesse cenário a luta torna-se imperativo da própria sobrevivência, atuando como um mecanismo de (re)afirmação de suas identidades, quer seja pela provocação dos tribunais, ou por qualquer outra estratégia.

Texto referente ao Cine Debate- VI Semana de Sexualidade e Gênero.

Madame Satã e a luta pelos direitos dos LGBT

        Na Unesp, câmpus de Franca, o Centro Acadêmico de Direito realizou a VI Semana de Sexualidade e Gênero, onde ocorreu um cine-debate de "Madame Satã", drama de Karim Aïnouz. O filme conta a história de João Francisco dos Santos, interpretado por Lázaro Ramos, personagem que se declara homossexual e realiza performances no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, com o nome artístico Madame Satã. O drama mostra a resistência e a luta de João Francisco, vulgo Madame Satã, que, além de homossexual, é negro, numa sociedade predominantemente racista e homofóbica, características que existem até os dias atuais, mas que eram extremamente potencializadas na década de 1930, período em que o filme se passa.
        Dito isso, o Grupo Gay da Bahia, em 2011 e 2012, realizou pesquisas que confirmaram que o assassinato contra pessoas da comunidade LGBT chegou a números extremamente elevados e apontam a falta de vontade política do Estado brasileiro como principal motivo para que esses números não caiam. Assim, percebe-se as violações aos direitos de segurança e às liberdades individuais da população em questão. Nesse prisma, o cientista político Michael McCann discute a chamada "mobilização do direito", que prevê a reivindicação por parte de atores sociais de direitos que não são garantidos na sociedade, visando buscar ações judiciais que efetivem suas lutas.
        Dessa forma, a comunidade LGBT está em luta constante para mobilizar a lei e buscar a criminalização da homofobia e, como consequência, o Supremo Tribunal Federal conheceu a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26. Tal julgado foi responsável pela efetivação da criminalização da homofobia e da transfobia no Brasil, tendo como base para a decisão a criminalização do racismo, já que a Constituição distingue os termos raça e cor, onde racismo designa a relação de superioridade/inferioridade de um grupo para com outro, que é o que ocorre na situação discutida (superioridade de heterossexuais cisgêneros em relação à população LGBT), e as violações às liberdades individuais e aos direitos fundamentais dos LGBT, que seriam direitos que deveriam ser garantidos a todos, mas que, na prática, essas pessoas não os têm, devido à opressão que sofrem diariamente, como mostra o filme "Madame Satã".

Giovanna Marques Guimarães - 1° ano - Direito (Matutino)

A vida sem estereótipos


O assunto da sexualidade e gênero é uma discussão que passou a ter uma maior abertura de diálogo atualmente, sendo de importante relevância para com todos os seres humanos, já que a busca pelo autoconhecimento indica a promoção de uma qualidade de vida benéfica a quem a compreende e tenta compreendê-la. Dessa forma, a Coletiva Casixtranha demonstrou com clareza que as pessoas podem expressar a sua liberdade, a sua vontade de dançar, de expressar algum movimento que reflita aquilo que a pessoa está sentindo naquele momento, evitando represálias e valorizando o que cada indivíduo pode contribuir para enriquecer esse diálogo -momento da Oficina da Coletiva, em que é aberto o contato para os ouvintes, com a dança Vogue.
Nesse contexto, a Coletiva pautou levemente o filme Madame Satã, que tem como enredo um homoafetivo que realiza “programas” nas ruas do Rio de Janeiro, na década de 30, e por esse motivo, é humilhado e perseguido seguidamente por policiais -responsáveis por prisões várias vezes, com justificativas esdrúxulas, como a não bem vista moradia nos morros, bailes de pagodes- ações estas observadas como “vadiagem” e passível de punições dos guardas. A partir desse ponto, vê-se que a necessidade de ser construído um estereótipo a respeito daquele indivíduo, sobre o tipo de relacionamento que aquele estabelece com o outro -algo equívoco, como disse a/o própria/o membra/o da Coletiva, em um comentário sobre o filme e a realidade, já que não é saudável definir o que tal pessoa é, afinal, nem mesmo elas sabem o que elas sã- é uma eterna busca de autoconhecimento e aprendizado de como lidar com tal situação, dentro de uma sociedade que precisa estabelecer rótulos.
Pensando nesse contexto, é possível relacionar o fato com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STF), em criminalizar a homofobia e a transfobia. Essa atitude pode ser observada como uma tentativa de, ao menos, diminuir a marginalização desse grupo importunado e tachado por uma sociedade brasileira conservadora e tradicionalista, em conjunto com as forças policiais que apresentado as mesmas características citadas anteriormente, usavam dessa força para penalizar atitudes não bem vistas. Então, o judiciário, em tempos presentes, ao discutir tal situação, retroage na história e estabelece que existe uma dívida, ao menos legislativa e cultural, para com estes grupos marginalizados pela não proteção na lei contra atos que os discriminam e atacam a sua dignidade e qualidade. Logo, a interferência do STF nessa questão é extremamente necessário, e vista como uma oportunidade para enfim clamar direitos que já deveriam ter sido discutidos e solucionados, mas que, por resultados históricos do conservadorismo cultural da sociedade e política no Brasil, precisaram de um incentivo legal para que se determine uma lei a respeito de tal prática detestável.
Logo, a Coletiva Casixtranha, ao reiterar que antes da chacota acontecer, elas/eles já as fazem com quem as/os apartam, buscar chocar e provocar uma população cega por seus preconceitos, ao mesmo tempo em que possuem coragem por expor a todos a sua liberdade de expressão afetiva -sem que rótulos limitem tais sentimentos.

Sarah Fernandes de Castro - Direito/Noturno

João cantava a vida

 
   
   A jornada de João Francisco dos Santos não foi nada fácil. Caracterizado como um jogador frequentador da Lapa e suas intermediações, o qual possuía aspecto feminino, fumante e constantemente embriagado, sua vida foi repleta de confusão até chegar a seu tão sonhado desfile de carnaval da Madame Satã. Isso porque a sociedade do Rio de Janeiro o repele enormemente. Apesar de todas as facadas nas costas, o herói sabia que tinha nascido para os dias de espetáculo e que não podia limitar sua essência à vida de malandro que todos esperavam dele.

Esse é um ponto muito importante: Todos acham que João Francisco “nasceu torto”. Isso porque o protagonista mora em um local simples, com pessoas de baixo poder aquisitivo e nível social, tratadas pelas autoridades como lixo devido às condições em que vivem. Vistos como propensos ao crime, rotulados de criminosos. Essa violência rotineira é mostrada várias vezes como, por exemplo, no assassinato a tiros de Renatinho. Além disso, em uma batida da polícia no local onde morava, João não demora a ser acusado por roubo e desacato à autoridade. João é humilde, exprime- se com dificuldade e, principalmente: é repreendido apenas por ser quem é. Familiar?

“Fabiano voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. Mexeu-se para sacudir o chapéu de couro nas ventas do agressor. Marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu. Deram-lhe um safanão que o arremessou para as trevas do cárcere.”

Ramos, Graciliano- Vidas Secas. p. 37

Por um lado, João era um homem muito cuidadoso que arriscava sua própria vida a fim de defender mulheres e crianças que estivessem em perigo. Era um sonhador almejando a música francesa polvilhada de aplausos. Planejava se endireitar para receber seu pagamento, ser alguém feliz e bem sucedido naquilo que amava. Por outro, sob o olhar preconceituoso da sociedade carioca da época, ele não passava de uma “bicha" homicida. Cumpriu 10 anos de regime fechado na prisão: único lugar em que permitiram sua entrada no filme inteiro.

Analisando o caso da criminalização da homofobia sob essa perspectiva, extrai- se que as lacunas constitucionais limitavam a eficácia da norma e o exercício do direito. Portanto, a Corte exerceu uma atividade de integração legislativa devido à recusa por parte do Parlamento em cumprir seu dever constitucional. O STF admitiu normatizar matérias desta categoria, visando impedir parâmetros injustos que desprestigiam a Constituição.

   O Judiciário assume, provisoriamente, o centro de decisões: Os poderes que lhe foram conferidos visam proteger o desejo da aplicação integral da Constituição, já que ela foi promulgada com esse intuito. Há evidente comprovação do interesse judiciário em assumir o dever: suprir tal falta a fim de evitar a mera posição de passividade dessa organização jurídica.

Logo, promove- se a maior efetivação desse processo de mudança necessária. Tornou- se imprescindível exigir o cumprimento efetivo do que a norma determina por meios judiciais, uma vez que a atuação supletiva do Poder Judiciário- a elaboração da normatização faltante pelo Tribunal -seria a garantia de realização dos direitos fundamentais e, assim, impossibilitaria a inconstitucionalidade que atinge indivíduos marginalizados,bem como os personagens da trama.

  Madame Satã é desrespeitada majoritariamente durante sua juventude, como retrata o filme. Utilizam- se frequentemente preconceituosas referências a sua sexualidade, como “maricas” ou “viado”. Julgam erroneamente que ele se “ fantasia de mulher para praticar atos repulsivos” em seu “ mundo devasso cheio de puta e vagabundo”. O mais triste é que discursos como esse não permaneceram na década de 30, mas sim transcenderam a barreira do tempo e tomaram seu espaço através de pessoas sujas e ignorantes até hoje. Os integrantes da comunidade LGBT, porém, apenas reivindicam seu direito a um tratamento diferente, mais digno para que possam crescer como seres humanos, profissionais e artistas.

Laura Filipini Noveli
1o ano- Direito Matutino

Conquistas


No cine-debate da VI Semana de Sexualidade e Gênero, a mesa foi formada pelos integrantes da Casixtranha. Grupo que realiza diversas oficinas promovendo a arte e a discussão de inúmeros assuntos pertinentes, como por exemplo, a homossexualidade e o preconceito ainda enraizado em nossa sociedade.

O objetivo do cine-debate foi realizar diversas reflexões a partir do filme Madame Satã e levantar alguns questionamentos da atual situação da sociedade. O filme aborda a história de João Francisco dos Santos, durante os anos 30. Vindo do sertão nordestino passa a habitar o submundo da Lapa, não tão glamourizado, mas, em meio à prostituição. Preto, pobre, pederasta, “sujeito de pouca inteligência”, é o que se lê nas acusações de um dos inquéritos policiais contra ele que foi preso diversas vezes ao longo do filme. Apesar da rotulação, Joao Francisco muito antes do movimento de orgulho negro, assumia um raro orgulho gay naquela época. Além disso, derruba também totalmente o estereótipo do homossexual histérico, efemininado e fragilizado, demonstrando possuir uma forte personalidade e ser a resistência à marginalização, preconceito e ao esquecimento por parte do Estado.

Dessa forma, a luta e resistência de uma minoria marginalizada como é o caso da comunidade LGBT’s é extremamente importante para diminuir os casos de preconceito e até mesmo de violência. O meio mais eficiente para mitigar esse cenário é por meio dos mecanismos democráticos, ou seja, a lei. Assim, recentemente por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão obteve-se a criminalização de todas as formas de homofobia e transfobia, como em casos de agressões, ofensas, seja coletiva ou individual, homicídios e discriminações a partir da escolha da sexualidade. Equiparando-se a Lei nº 7716 /89 (“Lei de Racismo”). Essa conquista é um avanço para o movimento LGBT, pois garante maior proteção e segurança a uma minoria que historicamente sofre. Ademais, essa vitória demonstra o pleno exercício da democracia e evolução da legislação, assim como o autor McCaNN afirma: “O acesso que as instituições judiciais concedem aos cidadãos para eles fazerem valer seus direitos é um direito-chave e um indicador do vigor democrático de uma sociedade. A capacidade das autoridades jurídicas para acelerar ou gerar a atividade judicial em defesa dos direitos é uma medida de vitalidade”.

Sem dúvida, é importante que grupos historicamente excluídos continuem sem interrupção na luta pelos seus direitos e que TODA a sociedade tome consciência de que os direitos devem abranger a todos de fato e não apenas na legislação. A criminalização da homofobia foi um passo extremamente considerável para dar visibilidade e notoriedade a luta dos LGBT’s. Dessa forma, a partir de conquistas como essa, as injustiças e mazelas da sociedades vão sendo solucionadas e um futuro com mais respeito as pluralidades e diversidades será construído.

André Luís Antunes da Silva
1º ano Direito Noturno