sábado, 23 de junho de 2018

Apenas Direito


O caso da Fazenda Primavera é mais um exemplo em que há confronto entre princípios da sociedade e antinomia jurídica. De um lado está quem priorize o direito à propriedade, presente no art. 5º da Constituição, e de outro há quem reivindique o direito à moradia, previsto no art.6º da Lei Maior. Neste caso, computa-se também o dever de atribuir à terra uma função social e, caso não cumpra tal função, ser passível de ocupação e destinação para reforma agrária. Boaventura de Sousa Santos tece explicações para essa dicotomia através da separação do direito, entendendo ele que há uma divisão radical entre dois sistemas jurídicos: o direito dos 1% e o direito dos 99%, o direito dos opressores e o direito dos oprimidos. O direito dos 1% seria aquele representante dos interesses da elite, dos detentores de poder e da parte da população mais abastada e influente. Enquanto que o direito dos 99% seria aquele representante das camadas mais populares, sem grandes riquezas ou poder de influência.      
     Nessa esteira, o direito e as decisões judiciais, refletem a sociedade e os diversos conflitos que nela se desenvolvem, mostrando que um mesmo problema pode ter diversas interpretações. Essa pluralidade decorre de interesses distintos em um trâmite jurídico, posto que partes opostas se enfrentam e buscam obter pelo direito a legitimidade de suas vontades. Tomamos como exemplo o pedido de reintegração de posse proposto por Plínio Formiguieri e Valéria Dreyer Formiguieri contra pessoas do MST que ocuparam suas terras. Aos primeiros o direito à propriedade deve prevalecer em detrimento do direito à moradia, pois prioriza-se o princípio de bens adquiridos pela compra, pelo documento e uma visão mais econômica sobre a terra, opondo-se aos valores defendidos por integrantes do grupo MST, que buscam nela um local para morar. Assim, o princípio de bens adquiridos pela compra, a lógica do dinheiro e uma visão mais econômica sobre a terra, são respaldados no direito dos 1%, procurando neste os instrumentos necessários para preservarem suas propriedades, mesmo que não fazendo uso total delas e tendo a ciência de que a área em questão não cumpre sua função social. Como resultado disso, temos a deturpação da democracia e igualdade que ela defende, posto que o direito se coloca ao serviço de interesses exclusivos de uma pequena parcela da população e renega o acesso à justiça para a maior parcela.             
     Do exposto, é imperioso fazer jus aos princípios democráticos presentes na Constituição e nortear o direito para decisões mais justas e humanas. Reconfigurar o direito com o fito de estabelecer uma “democracia real”, como explica Boaventura de Sousa Santos, seria esta um regime político que efetivamente promove a igualdade política, econômica e social e o respeito pela igualdade na diferença, transformando relações de poder desigual em relações de autoridade partilhada na sociedade como um todo e não apenas na letra da lei. Dessa forma, o direito seria apenas direito, não tendo a divisão entre o direito aplicado aos 1% e outro aos 99%.




Thaís Barboza - Turma XXXV - Noturno 

Auxílio contra-hegemônico dos movimentos sociais


A necessidade de reinvenção do direito levado a um paradigma legal e jurídico tem se expandido com a combinação criativa de novas práticas jurídicas e políticas que permitem que instituições hegemônicas sejam tratadas de maneira não hegemônica. Assim, o direito passa a possibilitar o alcance de causas marginalizadas, trazendo um incitante direito emancipatório.
A emancipação do direito constrói-se com a mudança de um processo político gradual de inclusão de grupos marginalizados, estes que necessitam se organizar em movimentos sociais para criar estratégias jurídicas e políticas que aproveitem a sua relação com os tribunais. Para isso, são utilizados diversos tipos de estratégias que pressionam e corroboram com a divulgação das demandas desses grupos marginalizados.
Os últimos movimentos sociais assistidos pelo país nem sempre tiveram um caráter mais revolucionário do que voltado para rebeliões. É por isso que uma efetiva coesão e sensatez em atingir os níveis mais perceptivos da sociedade normativa são necessários para que as causas demandas sejam atendidas de forma a, inclusive, formarem jurisprudência tal, que consolidem de maneira positiva as reivindicações manifestadas por essas classes excluídas.
O direito deixa de ser configurativo e passa a ser reconfigurativo, organizando as relações de força na sociedade. Nesse sentido o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra tem se mostrado eficiente em argumentar suas reivindicações com os poderes legislativos e judiciários, seja por estratégias políticas, seja por estratégicas jurídicas. De qualquer forma, têm conseguido mais procedência em suas ações de ocupação de terras de que improcedências, essencialmente baseando-se na função social da propriedade.
Contudo, magistrados que desempenham aplicações um tanto quanto arcaicas, ainda acabam por preservar o direito à propriedade instituído no Código Civil do que os direitos constitucionais estabelecidos pela Carta Maior. Entretanto, mesmo com tais posicionamentos, o MST tem conseguido dissipar a importância de sua demanda, principalmente dando uma função produtiva à terra, não sendo mais vistos apenas como esbulhadores e propagadores de violência que ocupam sem direito.
O direito à terra é acolhido pela Constituição Federal e desde que o direito civilista e todos os outros ramos do direito passaram a ter que se submeter a Carta Magna, as concepções privativas tiveram que ser suprimidas em detrimento das concepções da solidariedade social.
Assim, como configura Boaventura de Sousa Santos, a organização política e jurídica é essencial para a inclusão das causas das minorias, pressionando as instituições, de baixo para cima, para que o direito seja ocupado efetivamente por classes antes excluídas, em detrimento dos elitizados e civilistas que acabam por controlar o sistema normativo.


Heloise Moraes Souza - Diurno

As várias facetas da lei

    É inegável que a propriedade sempre teve um valor simbólico no Brasil: desde a época da colonização portuguesa, as vastas terras férteis do país foram motivo de ambição européia e amplamente exploradas por poucos lusitanos, os quais geravam riquezas incalculáveis para Portugal. Séculos depois, o problema da desigualdade ainda persiste: com o surgimento do neoliberalismo, têm-se um recuo estatal e a implantação de um Direito ''soft'' como analisa o sociólogo Boaventura de Souza Santos, na medida em que o Estado passa a regular apenas as relações necessárias, negligenciando a proteção às minorias e abrindo espaço para a consolidação de um ''fascismo social'', o qual se caracteriza pela retirada de direitos e insatisfação popular.
    A questão da propriedade, dessa forma, é inclusa nesse momento de retrocesso, uma vez que imensas porções de terra ficam concentradas nas mãos de ínfimos latifundiários enquanto milhares de famílias rurais são privadas do mínimo para se sustentar. Assim, cada vez de forma mais enfática, nascem os movimentos sociais visando a reforma agrária e a busca por uma justiça social: um dos mais conhecidos, indubitavelmente, é o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que passa a ocupar propriedades improdutivas e que não apresentam uma ''função social''.
    Essa é disposta no Art. 5º, inciso XXIII da Constituição Federal e revela a possível tutela jurídica em favor dos movimentos sociais, na medida em que objetiva a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução de desigualdades sociais e regionais. Nesse sentido, tratar da ''função social da propriedade'' foi decisivo para o julgado da Fazenda Primavera (SP) ocupada pelo MST no início dos anos 2000, no qual, baseando-se nos princípios fundamentais da Carta Magna e atendendo aos fins sociais, bem como o bem-comum previsto no Art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, os desembargadores vetaram a reintegração de posse por parte do proprietário do local.
   O caso revela, além disso, uma esperança dos ''indignados'' no Direito que passam a incorporá-lo como estratégia de luta, fato observado por Boaventura, uma vez que esse adquire um caráter reconfigurante nas relações hegemônicas vigentes até então. Por conseguinte, entende-se que a ciência jurídica torna-se política por outros meios e contestação do Legislativo menos acessível para as minorias. Têm-se, assim, a promulgação da Constituição Federal de 1988 como prova dessa transição, pois trata-se de uma memória de luta sedimentada em Direito positivado, no qual o MST fundamenta suas reivindicações através de um constitucionalismo transformador.
    Esse processo, ademais, é entendido por Boaventura de Souza Santos como uma Ecologia de Saberes dentro do Direito, na medida que ele expande sua atividade hermenêutica para o aspecto social, visando uma universalização resultante de um pluralismo jurídico que se baseia em uma legalidade cosmopolita mais desprendida das normas meramente positivadas e mais afins do direitos fundamentais, rompendo com a razão indolente que só pendia para o lado hegemônico dos indivíduos privilegiados representados por 1% da população.
    O julgamento da Fazenda Primavera, dessa forma, revela, ainda que momentaneamente, o enfraquecimento de um Direito Abissal (mantém a desigualdade e o status quo dominante) em favor de um Direito Reconfigurante, como coloca Boaventura, esse sendo germinado dentro das Universidades e da criação de cada vez mais assessorias jurídicas populares, as quais auxiliam na construções de novas cognições por parte dos movimentos sociais. Essa transição, contudo, não exclui a importância da luta por direitos, uma vez que a ocupação de terra é fundamental para instigar o Direito a agir nesses casos de injustiça social, assim, mobilizar o direito em uma perspectiva contra hegemônica é aplicar o direito dos 1% para os outros 99% como uma importante estratégia de enfrentamento da classe dominante.
    Diante do supracitado, conclui-se, por fim, que o caso da Fazenda Primavera torna-se significativo pois demonstra que a existência da propriedade não será mais tolerada como meramente um privilégio da oligarquia rural: essas terras tornaram-se um dever social de quem as detém. Em caso de descumprimento dessa princípio, por conseguinte, cabe ao Direito intervir em favor das minorias.

LÍVIA MARINHO GOTO - TURMA XXXV- MATUTINO