sábado, 25 de novembro de 2017

O espaço de criação dentro do Direito

Feto anencéfalo ou uma vida de Deus; homicídio, ou liberdade sexual e reprodutiva; religião ou racionalidade; patriarcalismo ou equidade. Entre as antinomias e conflitos sócias insurge o Direito, como mediador, conciliador. Bourdieu em sua obra alerta-nos do perigo ao extremismo de visão, tanto na do direito como autônomo e independente das pressões sociais, quanto ao puro instrumentalismo, no qual é utilizado pela classe dominante como uma arma mecânica, e inanimada.
O poder do direito, se constrói e se fortalece por si mesmo, na medida em que sua linguagem é mecanismo de apropriação, pelo intelecto, de poder, ou seja, de recurso na obtenção de prestígio no meio. E de legitimação para a sociedade. Além da generalização e universalização, fatores cruciais na perpetuação e imposição do Direito. A despeito dessa relativa autonomia, propiciada pelo próprio sistema jurídico, valores sociais consuetudinários, e os habitus dos membros jurídico, anteriores a este meio influem, ainda de que maneira singela, nas decisões destes. O direito é instrumento, também na medida que conserva valores, e instituições vigentes, e a elas da manutenção.
No caso da ADPF 54, forças simbólicas como o patriarcalismo e a religião são grandes influências, implícitas do conflito. O Direito como ciência racional, embasada por lógica e fundamentos que condescendem entre si, é uma força que através de sua manipulação pelo jurista é capaz de emancipar grupos sociais desfavorecidos. Nesse diapasão o direito neste caso é habilmente imposto para assegurar direitos fundamentais da mulher, até então sutilmente negligenciados, como o da saúde, da dignidade e da liberdade sexual e reprodutiva, ao ter liberdade para abortar o feto anencéfalo.


Maria Theresa Nakada Bessi 1 Diurno

Elementos do campo jurídico: a relação entre direito e dinâmica social

Pierre Bordieu, na obra O poder simbólico, discorre acerca do formalismo e do instrumentalismo do campo jurídico . Segundo o autor, o formalismo, exercido pelos doutrinadores, entende o direito como força independente e fundamental em si mesmo; enquanto o instrumentalismo, exercido pelos operadores do direito, tem um papel casuístico o qual está a serviço da classe dominante.
Diante disso, a interpretação do direito está a mercê de uma concorrência entre a divisão do trabalho jurídico, uma vez a hermenêutica representa uma força simbólica derivada das normas. Assim, existe no ordenamento uma construção gramatical voltada para a neutralização e a universalização, capaz de despersonalizar o sujeito passivo e criar uma imagem imparcial e objetiva do sujeito enunciador. Além disso, a universalização não abre espaços a variações individuais, fazendo com que a norma seja uma aplicação geral. A força simbólica do direito se encontra justamente nesses dois pontos. Ao empregar técnicas de hermenêutica eleva-se, ou rebaixa-se, a capacidade da norma jurídica, o que gera diferentes aplicações e realidades.
A crítica tecida aqui a uma teoria “pura” do direito, cujo maior expoente é Hans Kelsen, vai no sentido de que o direito não possui nele mesmo seus próprios fundamentos porque tem uma autonomia relativa e permeável a dinâmica social. Prova disso é o fenômeno da judicialização, o qual vem ganhando muita força no cenário brasileiro. Como elucidado por Luiz Roberto Barroso, em Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, o poder judiciário vem sofrendo fortes influências das demandas emanadas da população, especialmente dos movimentos sociais de caráter contra-hegemônico. Isso é evidenciado ao observar as ações de controle de constitucionalidade exercidas pelo Supremo Tribunal Federal, como por exemplo a Arguição de Descomprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, cuja matéria é interrupção da gravidez de feto anencéfalo.  
No referido julgado, decidiu-se que a interrupção da gravidez decorrente da anencefalia do cérebro não seriam enquadrados nos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal brasileiro, o qual disciplina pena de quatro anos de prisão para mulheres que praticarem tal ato. Além disso, usou-se também de princípios constitucionais, como dignidade humana, para aprovação do enunciado. É possível observar, portanto, que não se trata de uma nova elaboração legislativa, mas sim de um emprego diferente da interpretação do ordenamento jurídico.
Como trata-se de uma matéria de importância feminina, grupo historicamente inferiorizado, percebe-se que há polêmica. O corpo da mulher continua sendo objeto de disciplina do Estado e até por isso o aborto é criminalizado, numa prática um tanto contraditória em um ordenamento que tipifica o feminicídio e o promove logo na sequência.  E, embora a conquista da ADPF 54 tenha sido importante, o deputado federal José Aristodemo Pinotti defende que a terminologia aborto não cabe aos casos de anencefalia do feto, uma vez que não existe potencialidade de vida extrauterina. Destarte, a antecipação terapêutica do parto tem diferença substancial do aborto.

Recentemente, correu na Câmara dos Deputados o Projeto de Emenda Constitucional 181, o qual objetiva criminalizar formas de aborto já permitidas por lei. Essa PEC vem como resposta a 1º turma do Supremo Tribunal Federal que, em decisão histórica, decidiu não considerar crime a interrupção no primeiro trimestre de gestação independente dos motivos que levaram a gestante a tal ato. Observa-se aqui um retrocesso, desde a conquista da interrupção em caso de anencefalia de 2012. Diante disso, enxergar o direito unicamente como uma ciência com fim em si mesmo não tem diálogo com a realidade. A ferramenta jurídica é utilizada tanto para fins hegemônicos, como contra-hegemônicos - referindo-se a emancipação social de Boaventura de Sousa Santos. Os elementos sociológicos que permeiam a força do direito são claros, e precisam ser levados em consideração para um entendimento claro da influência do direito na dinâmica social, bem como, e principalmente, da influência da dinâmica social no direito.

Daniela Cristina de Oliveira Balduino, 1º ano - diurno.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ocorrida em 2012, debatia se a interrupção da gestação em caso de feto anencéfalo poderia ser caracterizada como crime de aborto, previsto no art. 124 do Código Penal. Com argumentos em sua maioria baseados no fato da não potencialidade de vida do feto após o parto e no princípio da dignidade da pessoa humana, a interrupção da gravidez em caso de anencefalia foi incluída às exceções da criminalização do aborto, as quais já continham o risco de vida da gestante e o estupro.
Nesta ADPF fica claro a intensa judicialização, uma vez que os argumentos sustentados apresentavam o debate sobre o início da vida, ou o que poderia ser considerado vida para a tomada de decisão, algo que teoricamente não caberia ao judiciário. Mas com a necessidade social de atender essa demanda, também podemos ver que mesmo com os conflitos sociais e opiniões pessoais divergentes quanto ao caso, nos termos de Bourdieu, lutas simbólicas, se fugiu do formalismo e do instrumentalismo, direcionando a decisão à escolha da mulher sobre seu corpo.
Ainda utilizando Bourdieu, é possível notar a “historicização da norma, adaptando as fontes a circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidades inéditas, deixando de lado o que está ultrapassado ou que é caduco”. Destarte, a decisão do STF utilizou seu espaço de interpretação da norma para atender uma nova demanda.

Apesar do avanço jurídico conquistado com a ADPF 54, é importante lembrar que o aborto em geral, não só nesses casos de exceção, é uma questão de saúde pública, e que o aborto clandestino ainda mata milhares de mulheres no Brasil e no mundo todos os anos. O que se pode esperar é que o direito não fuja às demandas sociais e que um dia o veredito desta ADPF possa ser estendido a todas as mulheres, sem terem que dar uma justificativa para ter direito sobre seus próprios corpos.

Linha de Produção

   Princípios como a Liberdade e a Dignidade, guardados no seio Constitucional Brasileiro, são valores/ideais que requerem ainda muita luta para serem efetivados. Recentemente, discutiu-se sobre a legalização do aborto de anencéfalos, considerado um tabu por parte das Instâncias Superiores de linha Conservadora e Retrógrada, que só fazem puxar os Direitos dos nossos cidadãos para um abismo. 

    O então Ministro Barroso, na ADPF 54, defende a legalização de tal ato, onde o sexo feminino teria o direito de escolher se gostaria de prosseguir ou não com a gestação, sendo assim, sua Dignidade assegurada. Representando ademais, parte de sua libertação de amarras sociais seculares patriarcalistas, em que a mulher é vista como mera linha de produção humana, um meio para chegar a um fim. Além de ainda sermos parte de um país  onde a religião, em nosso Estado teoricamente laico, exerce um papel de grande impacto (por vezes fanático) no tecido social.

    Para Bordieu, o Direito deve ser pelo Formalismo, dependende das pressões sociais e avesso às garras da Classe Dominante, ou seja, ele deve escutar aquilo que vem do clamor populacional. Pregando um processo de racionalização do meio jurídico, onde os aplicadores do Direito tem a obrigação de livrar-se de seus pré-conceitos ou de ideais condicionados previamente (o habitus), sendo mistér uma atuação que vise aquilo ansiado pela sociedade e não por seus interesses.

   Um legislativo que limite o poder de escolha dos seus cidadãos fere aquilo que há de mais importante e fundante no sistema em que vivemos, a Democracia. A pergunta é: Como poucos podem impor seus interesses ao corpo de milhões, amopliando sofrimento e perpetuando tabus sem fundamento racional?


Nome: Fabrício Eduardo Martins Soares
1 ano Direito Noturno