domingo, 4 de dezembro de 2016

A luta de campos

A linguagem ininteligível do judiciário por aqueles que não participam ou não estão acostumados com o idioma “juridiquês” é considerado algo maçante e de difícil compreensão pela Ministra e Presidente do STF Carmen Lúcia, a qual também afirma ser um linguajar com o objetivo de reserva de mercado, porque a informação é algo de difícil acesso, para a Ministra isso deve ser mudado.
Esse mundo delimitado e limitado é composto por protagonistas que aprenderam o mesmo idioma, cultura e possuem os mesmos interesses, recursos específicos e autonomia. Consequentemente, um estrangeiro que tentará embarcar nesse mundo, muito provavelmente, será marginalizado, mesmo que haja algum protagonista tentando naturalizá-lo.
O mundo de atuação de cada um na sociedade pode ser traduzido por campos e até microcampos, como um movimento estudantil dentro da universidade, esses campos possuem uma hegemonia formada mais por aqueles que estão inseridos do que por aqueles que não estão.
O mundo jurídico possui o sistema simbólico expresso na linguagem refletido na exegese de suas normas. O direito se basta em si mesmo, ele cria, recria e preenche lacunas que ele próprio não havia preenchido. O próprio direito delimita até onde ele vai, com suas definições e soluções aplicadas na sociedade, logo ele molda a sociedade, porém não deve se olvidar que ele é feito por ela.
Apesar de o campo jurídico possuir uma delimitação e uma rígida seleção para transpor essa fronteira limitadora, as transformações de fora do campo respingam dentro dele, fazendo com que haja pequenas aberturas nessa fronteira. É através da luta de fora que se transforma aquilo que rege e molda a sociedade. Não é através do campo do direito que se transforma o campo social, mas ao contrário.
Bourdieu aponta para duas dicotomias do direito que representam a dominação social em voga e a luta por mudanças. Por exemplo, o direito civil, dentro do direito privado, apoiada na economia, preceitua a conduta de uma parte da vida social regulamentada pelo campo do poder refletido no jurídico; e de um lado oposto o direito do trabalho que é resultado de luta de emancipação política.
Uma dessas lutas concomitante a percepção da mudança social refletida no direito, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal de 2012 o qual julgou procedente que um feto com anencefalia é natimorto, consequentemente foi adicionado mais uma situação em que o aborto não é considerado crime passível de punição penal, totalizando três momentos, quando a mãe corre risco de vida pelo motivo da gravidez e quando a gestação é fruto de estupro. Mais recentemente, o STF concluiu em um caso específico que o aborto de um feto de até três meses não é considerado crime.
Factualmente, há casos em que a hermenêutica e o direito não mais são instrumentos do conservadorismo o qual nega a mudança e a evolução social. Em todas essas situações que descriminalizam o aborto preserva-se a escolha da mulher, ela é quem tem a autonomia de reger a si própria, considerando-se o seu direito sexual e reprodutivo e sua integridade física e psíquica. A conjuntura atual mostra que independentemente da opinião pública, majoritariamente conservadora e contra o aborto, por enxergarem que ao descriminalizá-lo seria o mesmo que permitir um homicídio sem punição, o aborto clandestino em clínicas particulares e em açougues continua acontecendo.
Muito mais que se criminalizar, o aborto é uma questão de saúde pública e social. E o judiciário tem compreendido e analisado as normas em acordo ou desacordo com a constituição e principalmente com a realidade social. Porém, o poder legislativo já se manifestou contrário a esse caso recente, declarando que caso o STF volte a legislar, eles responderão ratificando ou retificando a decisão.
 A transformação ocorre, mas a estrutura do poder vigora. Daí parte o papel da sociologia, confrontar os textos, o simbolismo e a exegese com a sociedade e transformá-lo concomitantemente à sociedade. 


Lorena Lima-Primeiro ano-Direito Noturno

viver é recordar

          Não é somente sobre o direito à vida do embrião, nem só do direito às decisões acerca do próprio corpo para a mulher. Discutir aborto é tratar também dos costumes, das crenças e tradições de uma sociedade que, por mais heterogênea que seja, há por trás uma ideologia que fala mais alto, se impondo às demais. É preciso compreender a sociedade, portanto, como um conjunto de dinamismos de modo que até mesmo as divergências - individuais e coletivas - se dão num plano da constante transformação e dificilmente, para não dizer nunca, encontram-se imobilizadas. Dessa forma, quando uma instituição do porte do STF toma uma decisão como a permicividade do aborto de fetos anencéfalos, não se discute apenas a questão da ciência, ou apenas a fé. Discute-se a própria sociedade, com toda a sua complexa rede de relações, suas mais diversas opiniões, da chamada classe dominante ao mais marginalizado indivíduo. 
           Seria muito mais fácil, mais cômodo e mais rápido discutir decisões com base numa, e apenas uma, linha de pensamento. Caso se adotasse apenas a biologia, por exemplo, a discussão estaria terminada antes mesmo de começar. A vida é inviável para fetos anencéfalos, cem por cento nascem mortos - se é correto dizer nascer morto. Então, que permita-se abortá-los. Mas o direito não é só biologia, sociologia, psicologia ou todas as outras gias que queiram inventar. Direito também não é só vontade de um, e também não é a soma da vontade de todos. Direito é essa coisa que ninguém entende, coisa de gente inteligente, coisa esquisita que é e não é ao mesmo tempo. Direito está a mercê de todo o conjunto de conhecimento de uma época, de sua episteme, somado ainda a diferentes possibilidades hermenêuticas e interpretativas. O direito representa as lutas existentes dentro da sociedade. Seus resultados são tão efêmeros quanto a própria existência e tão sólidos como as mais velhas tradições humanas. 
          Não é somente sobre o direito à vida do embrião, nem só do direito às decisões acerca do próprio corpo para a mulher. É sobre o que a sociedade é, sobre o que ela quer. Não é unânime, não é mais nem menos verdadeiro que um mito. É um pretexto, uma história. É um conto que se cria para explicar as próprias vontades. É a luta das nossas vidas. É o cotidiano, o praxe e o incomum.

          pedro guilherme tolvo - noturno