sexta-feira, 17 de agosto de 2012

"Olhai os lírios do campo"


                No Evangelho segundo Mateus, encontra-se um dos mais famigerados discursos de Jesus, em que se pode sintetizar os princípios da doutrina cristã. Jesus toca em diversas questões morais, dentre elas a relação do ser humano com a propriedade: “não podeis servir a Deus e à riqueza” (Mt 6,24)
                Séculos mais tarde, o cristianismo se desenvolveu e encontrou diversas vertentes, como a Igreja Católica Apostólica Romana, as Igrejas Ortodoxas e as Igrejas Protestantes. O movimento protestante, em especial, desenvolveu-se justamente em um período em que a ordem econômica europeia se reorganizava, ascendendo, em concomitância, o capitalismo e o protestantismo.
                Seja por resposta ao Ancien Régime, seja para se adequar à modernidade capitalista, Max Weber reflete sobre a forma como a ética protestante se desprendeu da rede dogmática religiosa e se disseminou pelo mundo alcançando dimensões universais.
                O espírito acumulador do homem não é recente e nem é a primeira vez que deturpa a religião, em especial a cristã que o condena. A história da traição de Cristo por Judas é a história de um Deus traído por dinheiro. O protestantismo surge, justamente, em resposta ao comportamento mundano e materialista da Igreja Romana. O que o capitalismo traz de novo a ser sustentado pela ética protestante é o empreendedorismo: o acúmulo do lucro para ser reaplicado a gerar nova riqueza.
                Esse espírito empreendedor que valoriza o trabalho e a prosperidade é um dos pilares do movimento protestante e foi responsável, não sozinho, pelo desenvolvimento de nações eminentemente protestantes, como os Estados Unidos da América. Conscientemente ou não, no mundo hodierno a valorização da prosperidade corre no sangue de praticamente todo ser humano. Fieis recorrem às igrejas e templos para que Deus lhes prova não apenas o pão cotidiano, mas o capital para uma panificadora transnacional. E o protestante, o católico e o ortodoxo, o budista e o hinduísta, o judeu, o muçulmano e o ateu, todos servem, enfim, a um só senhor.

Uma outra visão do capitalismo



Em suas análises do sistema capitalista, Weber afirma que o aspecto fundamental do avanço conquistado pelo capitalismo não está na ânsia pelo lucro, mas sim na dinamização social do investimento. Ele ressalta que a ânsia pelo lucro já existia em modelos sociais anteriores.
    Essa visão de Weber é muito interessante, pois desmistifica uma das considerações principais sobre o capitalismo. Considera, que antes de tudo, esse sentimento de posse, de busca por “algo” além, é um sentimento presente em todos os indivíduos, é um instinto de sobrevivência.
   Ele afirma também que o objetivo principal do proprietário não é gastar o que arrecada, mas trabalhar para que seja visto como predestinado de Deus, o importante é reinvestir, fazer crescer o acumulado, e não simplesmente consumir. O sistema não fixa-se somente no ciclo produção e venda, mas está acima disto.
   Quando ocorre um desequilíbrio, seja devido o consumo exagerado ou com a falta dele, ocorrem às crises econômicas. Assim como qualquer outro sistema que já existiu na história, o capitalismo precisa, para sua existência, de condições propícias para que possa funcionar.

Avareza e Capitalismo


Ao propor a tentativa de atribuir uma definição ao espírito do capitalismo em sua obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, o alemão Max Weber se comprometeu a um trabalho complexo. Para que fosse possível cumpri-lo, foi necessária uma regressão até os fatores históricos que culminaram no surgimento do capitalismo, seguindo então para fatores que o caracterizam e suas influências na sociedade da época. Partindo de tal estrutura é possível comparar a sequência apresentada por Weber à estória vivida por Ebenezer Scrooge em “Um Conto de Natal”, na qual Charles Dickens criou um personagem extremamente avarento e que, mesmo em plena época de Natal, recusa-se a ajudar seu pobre empregado e é visitado por três fantasmas que tentam convencê-lo a comportar-se de maneira diferente.
Assim como o primeiro fantasma mostrou a Scrooge os natais do passado, onde havia desgraças, mas também fartura, Weber mostra a transição das sociedades para o modo de produção capitalista. A perspectiva de troca foi substituída pela dinamização racional do investimento, assim como a ética cristã foi substituída pela protestante. O processo de racionalização combinado com o protestantismo resultou na superação do “dualismo religioso” e na disseminação de uma moral prática. Como na ficção, a realidade apresenta desgraças (miséria) e fartura, mas desta vez separadas de acordo com as classes sociais.
Já o fantasma do Natal presente mostra ao avarento protagonista o que acontecia naquela mesma noite: a morte do filho de seu empregado devido a uma doença que não pôde ser tratada, visto que este era muito pobre. O mesmo acontece no mundo capitalista, havendo até mesmo aqueles que se julgam capazes de justificar as desigualdades sociais. Então, sob a lente protestante, homens como Scrooge são “predestinados” ao sucesso, sendo a sua situação econômica um sinal da salvação, enquanto que homens como o pobre empregado ainda precisam trabalhar muito para acumular o necessário para atingir a salvação. Enquanto na ética católica este comportamento seria tido como corroído e degenerado, na ética protestante ele é o caminho para algo que deve se tornar bom.
No final da noite, Scrooge é visitado pelo fantasma do Natal futuro, que lhe mostra seu próprio enterro. Não há ninguém para chorar pelo amargo homem, que se vai deixando toda a sua fortuna sem sequer ter usufruído desta com o intuito de acumular sempre mais. Assim também é o capitalista que Weber apresenta em sua obra. Abandona-se a filosofia do “carpe diem” em prol da acumulação; nada mais é suficiente para o homem, e, como lembra Benjamin Franklin, “tempo é dinheiro”. O capital adquire tamanha importância ao ponto das relações humanas tornarem-se apenas conexões para fins econômicos, resultando em seres humanos frios e relacionamentos artificiais.
Depois de toda a reflexão acerca dos natais, os fantasmas dão a Scrooge a chance de recomeçar o dia e mudar seu destino e é aqui que se pode ver uma esperança para a realidade deste mundo. Diferentemente da estória, é, obviamente, impossível retornar ao passado por pior que seja a situação; porém, a humanidade ainda pode mudar seu destino. Os fantasmas do mundo são a sua História e seus exemplos, resta aos homens vê-los. Uma vez conscientes, a ação é consequência.