sábado, 7 de maio de 2011

Tudo é social

Depois do positivismo nos introduzir um esboço de uma nova ciência, Durkheim toma para si o trabalho de tornar esse esboço uma ciência propriamente dita.
O cientista social do pós-positivismo deveria ter como objeto de estudo o fato social, que abrange fenômenos com caracteres nítidos em uma sociedade, que se distinguem dos estudados por outras ciências da natureza. Durkheim nos apresenta o fato social como sendo coercitivo, ele independe do indivíduo e por meio dele podemos observar que o homem age em sociedade de acordo com as regras do grupo. Assim podemos assumir que nada é produto de nossa própria elaboração, e que tudo consiste em imposição externa.
É grande o poder coercitivo do fato social, tanto que a coerção deixa de ser sentida, somente quando dá lugar aos hábitos, tendências internas que derivam dessa coerção. A própria educação que nos é passada é imbutida de regras que aos poucos são interiorizadas.
Importante também é o modo como se deve proceder quanto ao estudos desses fatos sociais. Eles devem ser analisados como coisas, já que nossos sentimentos poderiam interferir no exame científico desses fenômenos, e não se pode alcançar a verdade científica quando se está repleto de pré-noções. O próprio Bacon chegou a citar essa ideia quando critica os ídolos da mente (noções falsas que ocupam o intelecto humano, dificultando a busca da verdade).
Durkheim foi muito influenciado por Anguste Comte, mas o critica quanto ao seu pensamento de valorizar a ideia sobre a história e não a história em si. É isso que para Durkheim existe de metafísico no positivismo, prejudicando-o. O que Durkheim propunha era que analisassem como os fatos se encadeiam e não como deveriam se encadear, pois a essência da sociedade estaria na explicação dos fatos sociais. É nesse sentido que se estrutura o pós positivismo, uma ciência concreta, com ênfase no social.

Ciência aplicada

No tocante ao pensamento centrado em como avaliar os métodos de se conhecer o mundo em sua essência o mais verdadeira possível, como puder o ser humano, apresenta-se a nós aquilo que costuma-se chamar “fato social”. E a partir desse conceito Durkeheim expande sua idéias relativas ao estudos empíricos.
Está mais do que claro ser o homem alvo de estímulos diversos provenientes de tudo o que há ao seu redor. Sejam eles visíveis ou não. Entretanto, alguns desse estímulos são completamente discerníveis por se tratarem de fenômenos tipicamente humanos, e é esses que compõe o “fato social”. Visto ser o homem um ser tipicamente social , está inserido num contexto onde relaciona-se intensamente com seus semelhantes, e por isso existe uma espécie de influência mútua que por vezes parece ser muito sutil, mas é muito poderosa. Essa é a influência do grupo. Como se nota, grupos diferentes tendem a ter características diferentes. As influências, portanto, são também diferentes. Podemos entender essas manifestações como parte do conjunto cultural do grupo.
Se consideramos a cultura desse grupo como seu elemento mais poderoso, é imperativo também inferir que um indivíduo que se insira no contexto onde prevalece essa cultura, com o tempo, virá a ser por ela dominado. Seria quase impossível que assim não o fosse. Determinados elementos de um conjunto social são imprescindíveis de ser assimilados por todos para que haja uma convivência razoável. Uma convivência possível, acima de tudo. Com efeito, alguém que se aventurasse em falar uma língua desconhecida entre os seus não lograria muito êxito...
Contudo, podemos pensar que existe outra ordem de fenômenos que decerto podem ser “manipulados” pelo indivíduo, que decidiria servir-se deles ou não. Mas eis que surge um entrave a tal idéia. Imagine-se o caso da moda, que serve bem de exemplo por ser geral o bastante. Apesar de a pessoa poder acreditar-se no pleno domínio do que veste, ela não ousa diferir muito daquilo que comumente se veste em sua sociedade. Raras são as exceções, que ainda assim, mesmo sendo rebeldes em alguns pontos, submetem-se em outros. Daí que podemos concluir não existir propriamente dita uma vontade totalmente individual, alheia a quaisquer influência exteriores. Um indivíduo em sociedade necessariamente partilha das idéias dela. São os “fatos sociais” que determinam como um indivíduo será modelado.
Mas então, para que a pessoa não seja tragada pela avalanche de influências que a cercam, deve ela tentar ser mais ativa quanto aquilo que ela deixa-se assimilar. E isso pode ser feito pela análise criteriosa dos fenômenos que a rodeiam. É nesse momento que torna-se imprescindível o abandono de suas próprias idéias em favor da observação fria. Será necessário o abandono daquilo que até então ela entendeu como correto, pois que esse entendimento deriva de uma educação social generalizada e não raro equivocada. Precisará ela despir-se do substrato passional que carrega, execrar suas pré-noções como se fossem espectros de um mundo há muito esquecido. É necessário a capacidade de reinventar-se. E fazendo isso, estará fazendo ciência, a sua própria ciência, aquela que aplicará em sua vida com proveito próprio, e não uma ciência embasado numa retórica estúpida, eloqüente em sua própria ignorância. O indivíduo, para não ser cego, deve criar para si uma ciência que lhe sirva de luz quando a escuridão o ameaçar.

Pra viver?

Toda vida em sociedade tem seus problemas. Nunca na história houve um agrupamento humano em que a totalidade de seus elementos estivesse satisfeita. Incomodados, os homens passam a avaliar como deveria ser a sociedade,contestam suas falhas. Alguns, mais revoltados, dizem que o sistema vigente é insustentável. Com todos esses nervos à flor da pele, passam a formar certas ideologias e a elas se tornam dependentes. Criam um mundo novo, um “País das Maravilhas”, e, como Alice, deslumbram uma realidade que não passa de um sonho à sombra de uma árvore. Durkheim, em sua obra As Regras do Método Sociológico, trata desse assunto logo no capítulo inicial. Nele, explica que a sociologia é a ciência responsável por analisar os “fatos sociais”, não se prendendo ao “como” deveria ser a sociedade. “A reflexão é, assim, incitada a afastar-se do que é o objeto mesmo da ciência, a saber, o presente e o passado, para lançar-se num único salto em direção ao futuro.” (Émile Durkheim).

Mas por que seria a ideologia tão prejudicial? Não consigo não pensar na música “Ideologia”, da extinta banda Barão Vermelho, para responder esta pergunta. Ela diz: “Meus heróis morreram de overdose, /meus inimigos estão no poder”. Neste trecho, quando Cazuza cantava “overdose”, não se tratava de entorpecentes, nem mesmo remédios, mas de uma overdose mental. Seus heróis, que pregaram com tanta força idéias revolucionárias, perderam-se na irrealidade, na fantasia. Ao fim, seus inimigos continuavam no poder, e até hoje, anos depois, continuam. Os primeiros versos da canção confirmam a análise agora feita: “E as ilusões /estão todas perdidas./ Os meus sonhos/ foram todos vendidos.” A ideologia é como óculos de lentes divergentes. Através deles, podemos ver objetos distantes com mais clareza, mas deixam embassado tudo que está a nossa volta. A ideologia é capaz de nos alienar. Nela, tudo é belo, tudo é harmônico. Ela se opõem a todas as falhas, tudo que é feio e odioso na sociedade. Sua teoria faz nossos sangues ferverem e nossas vozes clamarem por justiça...mas nada é real.

Durkheim explica que as ideias não podem anteceder os fatos concretos, e sim o inverso. São os fatos concretos que nos embasam para a formulação de teorias. Durkheim é empirísta. Seu conceito é tão radical que chega a considerar Augusto Comte um tanto quanto metafísico. Ele diz que o “fato social” deve ser visto estudado como uma coisa, da mesma forma que as ciências naturais avaliam seus objetos de estudo: “O que existe, a única coisa que realmente é oferecida à observação, são as sociedades particulares que nascem, se desenvolvem, morrem, independentemente umas das outras”(Émile Durkheim). Citando Bacon, a ideologia é um tipo de preconceito (ídolo) que não pode ser trazido para o estudo da sociedade. Os valores, os pensamentos do cientista social não podem violar o experimento.

A grande pergunta é: Será que isso é possível? Será que somos capazes de julgar a sociedade sem lançar mão de nossos conhecimentos pré-existentes? Será que somos capazes de elaborar leis baseadas apenas na realidade, nas relações entre os indivíduos, não passando tudo antes pelo rigoroso crivo de nossa consciência? O nosso “bom-senso” pode ser silenciado? Como pode um elemento, que foi criado sob (de acordo com Durkheim) as pressões exercidas pela coletividade, foi forçado a acatar hábitos que não lhe eram naturais, forjado a partir dos interesses alheios, “arrastado por todos”, exercer juízo sobre essa mesma coletividade? Como poderia uma cadeira contestar seu marceneiro; um candelabro avaliar o trabalho de seu próprio ferreiro? É uma só pergunta, que pode ser feita e pensada de diversas formas, sem nunca alcançar uma resposta objetiva.

Durkheim diz que sim, é possível o cientista social se separar do meio em que está inicialmente inserido e o definir. Entendo que sobre este assunto, jamais haverá consenso. Jamais desaparecerão as bandeiras e gritos de justiça, nem as reprovações de conservadores. Eu creio que sim, é possível a produção de estudos sociais neutros, a publicação de leis baseadas na análise e não em conceitos deturpados. Foi assim que surgiu o “Penso, logo existo” de Descartes. Como disse Bacon, alcançaremos tal objetivo através da análise fria, sem nos deixarmos levar pela retórica. Não é errado possuir convicções e valores, mas estes devem provir da realidade, e não de devaneios. Seria a ideologia forte o suficiente para resistir à prova do mundo concreto?

A ideologia é viciante. Ela pede a cada dia doses maiores, até nos aprisionar de maneira irreversível. Pode ser que seus heróis estejam morrendo de overdose e você nem saiba. Ela nos aliena. Talvez enquanto você gasta seu tempo correndo atrás de ilusões, seus inimigos continuem no poder. Você ainda quer uma para viver?