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domingo, 20 de agosto de 2017

A compreensão como método

            Durkheim traz, em seu método, uma forma diferente de fazer ciência. Ao analisar os fatos sociais como “coisas”, o pesquisador consegue ganhar distância daquilo estudado, e, então, ganha maior grau de independência e deixa suas opiniões e preconceitos influenciarem menos no estudo daquele fenômeno. Quando defende esse posicionamento, o filósofo entende que a explicação dos fatos sociais (que define como maneira de agir, pensar ou sentir aliada a um poder coercitivo exterior ao sujeito, porém nem sempre detectável) se dá ao investigar, separadamente, sua causa e função no corpo social.
          Assim, atenta para um cuidado metodológico finalista, em oposição à crescente visão positivista (que busca apenas entender o que se encontra posto, sem preocupação com as razões de ser daquele fato social observado). Deste modo, o finalista pensa nas causas eficientes das instituições, como o Direito.
            Por se ocupar da busca de equilíbrio social, o Direito se encontra constantemente se modificando a fim de apaziguar os ânimos gerais e evitar uma anomia, um caos social. Não basta, então, que haja vontade individual para mudanças, mas condições sociais. É nesse sentido que a ciência funcionalista pode parecer mera tentativa de encobrir conflitos. E é aqui também que pode ser encontrado seu maior artifício, ao demonstrar que o foco das ciências não deveria ser o indivíduo, mas o todo, e pouco importam ações individuais para formação da consciência coletiva, já que esta adquire um caráter diferente da soma das consciências individuais – aqui, inclusive, ações serão reprimidas ou incentivadas, facilitando extremismos ou aceitações não encontradas na maioria individual das coletividades.
            Acredito ser oportuna a crítica à inércia na formação do pensamento coletivo. Para que haja transformações na moral, é preciso realizar certa pressão (nisso reside a importância da resistência de determinados grupos sociais lutando por melhores condições de vida social, de inserção). Guardadas as devidas proporções históricas e salientando a diferença quanto aos objetivos de cada autor, é possível notar, de forma prática, na frustração de Drummond com a falta de empenho em mudar a sociedade e sua angústia de quando há certo embate social, porém com baixo efeito real, certos aspectos das teorias durkheimianas.

“Nosso Tempo (trecho)

Carlos Drummond de Andrade


I
Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
II
Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.
Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.
A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.
III
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?
Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiados urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da
costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes...
E muitos de vós nunca se abriram.
IV
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.
É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.
No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos. [...]”

            Logo no começo de seu poema, Drummond, ao notar a falência de algumas instituições (“Em vão percorremos volumes, / viajamos e nos colorimos. / A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. / Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. / As leis não bastam. Os lírios não nascem / da lei [...]”), percebendo a busca pelo novo, dado que o já posto não mais agracia o todo social realiza crítica parecida com a de Durkheim. O poeta demonstra, então, a força da consciência coletiva e a dificuldade sofrida pelo indivíduo que destoa dela (“Calo-me, espero, decifro. / As coisas talvez melhorem. / São tão fortes as coisas! / Mas eu não sou as coisas e me revolto.”). Enfim, após suplicar para que se volte a fazer oposição individual as posições coletivas, demonstra conhecimento da organização social para evitar a anomia, com constante propaganda e vigilância.
            A visão de Durkheim, portanto, pode auxiliar no entendimento de angústias inerentes aos homens e, destarte, uma visão mais finalista no âmbito cientifico pode levar a novos caminhos para enfrentamento dos problemas. O Direito pode se beneficiar desse tipo de enfoque ao objetivar melhor aplicação e organização das instituições.

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