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quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Em direção a emancipação feminina: um caminho longo e árduo

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas:
Geram pros seus maridos
Os novos filhos de Atenas

Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito, nem qualidade
Têm medo apenas
Não tem sonhos, só tem presságios (...)

Chico Buarque- Mulheres de Atenas

É controverso estabelecer o surgimento da sociedade patriarcal. De qualquer forma, o fato é que há séculos temos- em diferentes civilizações e em épocas distintas, como fica claro em ‘’mulheres de Atenas’’- o domínio público e privado sobre o corpo e vontade das mulheres. 
Desde os tempos mais remotos, uma das maiores expressões dessa violência e controle repousa sobre a reprodução. Nos países marcados pela hegemonia religiosa- conservadora, como é o caso do Brasil, milhares de mulheres morrem anualmente- sob o pretexto, paradoxalmente, de proteção da vida- por aborto inseguro. No ápice desse controle reprodutivo e da completa coisificação da mulher como uma espécie de ‘’máquina de procriação’’, o Estado, a Igreja e a sociedade brasileiras, mesmo com a redemocratização, só em 2012 com a ADPF 54 deixaram de penalizar mulheres- ao menos, legalmente- pela interrupção da gravidez nos casos de completa inviabilidade de vida extra- uterina, como na gestação de anencéfalos. 
Julgada procedente pelo STF, a ADPF 54- pedida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde- declarou que interrupção antecipada e terapêutica da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida. Com isso, a interpretação segundo a qual a interrupção deste tipo de gravidez é conduta criminosa- tipificada no código penal- se torna inconstitucional. Antes da decisão, a interrupção da gestação de fetos com ausência total ou parcial do cérebro necessitava da anuência da Justiça, a qual comumente negava e mulheres tinham que arcar com as graves consequências físico-psíquicas de levar adiante a gestação do natimorto. O STF fundamentou a procedência da arguição considerando que tal situação afeta a dignidade da pessoa humana, o principio da legalidade, liberdade e autonomia de vontade e o direito à saúde, todos da Magna Carta. Como não há possibilidade de vida extra- uterina potencial, os ministros entenderam que a interrupção terapêutica não tipifica crime de aborto e que, na verdade, o que sustenta a proibição de interrupção gestacional nesses casos são as convicções religiosas e a Constituição de 88 determinou a laicidade estatal. No que tange ao direito à vida, o ministro Marco Aurélio (julgado, p. 23) foi enfático: "Anencefalia e vida são termos antitéticos’’.
Pensando no caso da ADPF 54 e não na questão mais abrangente que a envolve (a descriminalização do aborto em si, enquanto questão de saúde pública), os juízes que equiparam conduta criminosa à interrupção terapêutica usam do instrumentalismo. Em relação ao formalismo, tanto a visão conservadora quanto a decisão pela não criminalização no caso da anencefalia têm- aparentemente- uma análise positivista dos textos normativos. A primeira concepção parece ser limitada ao texto expresso do CP, no entanto, é permeada por campos extra-jurídicos como a moral religiosa. Já o veredito do STF sofre a influência da expansão do movimento feminista e dos avanços da medicina. Assim, só aparentam ser marcada pelo formalismo, o qual concebe o direito como um sistema fechado e autopoiético. A decisão do STF, por sua vez, comprova a crítica de Bourdieu ao instrumentalismo, em especial, à análise marxista que concebe o direito como uma expressão direta da determinação econômica e dos interesses dos grupos dominantes. Na verdade, o campo jurídico não se resume ao instrumentalismo e tampouco ao formalismo, a luta dentro do campo é simbólica, se dá dentro do ''espaço dos possíveis'', daí a autonomia relativa do campo. 
Em outras palavras, a despeito da possibilidade e certa liberdade que os juízes possuem para interpretar os textos normativos, nenhum deles são completamente livres, pois estão sempre limitados e pautados na estrutura e formalidades e princípios do campo. O voto da ministra Cármen Lúcia (julgado, p. 29) deixa isso evidente: ‘’O embrião é (...) ser humano, ser vivo, obviamente (...) Não é, ainda, pessoa, vale dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto constitucional da pessoa humana”. Percebe-se que ela não justifica seu voto pautando-se em crenças pessoais, ela o pauta no estatuto constitucional da pessoa humana, o reveste da simbologia do campo, respeitando o ‘’espaço dos possíveis’’. Isto é, luta no campo jurídico têm de observar uma determinada linguagem, forma, solenidades e se lastrear nos princípios do mesmo direito que se pretende transformar.  
É esse respeito à estrutura simbólica do campo que reveste a decisão e a torna legítima, ainda que a judicialização seja, nesse caso, contra- hegemônica. É por conta dessa força e estrutura simbólicas, da racionalização, universalização e normalização que a decisão da ADPF 54 e os textos jurídicos aparentam estar isentos de convicções e valores do magistrado, parece que o veredito é proferido por uma entidade neutra. Soma-se, ainda, a hierarquização do corpo jurídico que reforça a possibilidade de resoluções mais coesas dentro do direito, quando comparado a outros campos. Em suma:
’O campo do direito é o lugar de concorrência do monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente em interpretar (de maneira mais ou menos livre e autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legitima e justa do mundo social’’. (Bourdieu,p. 212) 
Há, porém, outra forma de olhar. A interrupção da gestação de anencéfalos não é uma questão pontual, está estreitamente vinculada ao direito da mulher ao aborto legal e seguro. Além disso, na prática, mesmo com a ADPF 54, as mulheres têm- freqüentemente- o direito negado pelos hospitais, pois esbarram nesse poder invisível, simbólico que cumpre seu papel político e social de dominação do feminino, a cultura machista, por exemplo. Nesse sentido, considerando uma análise marxista- estruturalista sobre o Direito, pode-se dizer que a decisão do STF foi instrumentalista, ainda que travestida de um caráter contra- hegemônico. Para essa perspectiva, como o direito serve ao poder dominante, o máximo que as mulheres adquirem dentro desse campo são direitos pontuais (ADPF 54) e não o pleno direito ao seu corpo, a emancipação de fato. Ou seja, mesmo com a decisão do STF, o domínio do Estado sobre o direito de escolha da mulher resiste, pois o cerne da questão da desigualdade de gênero- tanto no âmbito material quanto no âmbito formal, a tipificação do aborto como crime pelo CP- permanece intacto. 
A despeito de tal concepção, é inegável que embora as mulheres ainda estejam longe de se livrar dos reflexos de séculos de submissão e de decidir sobre seus corpos sem serem condenadas pelo Direito e pela sociedade, a ADPF 54 e o recente pronunciamento do STF sobre o aborto até o terceiro mês de gestação mostram que o direito não é só um instrumento de manutenção do status quo, ele pode ser- em especial quando comparado aos outros poderes- um aliado nessa longa e árdua luta pela emancipação feminina. 



Juliana Inácio- Direito noturno



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