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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Direito pra quem?

O episódio que ficou conhecido como "massacre do Pinheirinho" foi resultado de uma decisão judicial repleta de suspeitas e irregularidades. Em 2012, a polícia civil e militar, numa "operação de guerra", expulsou mais de seis mil trabalhadores sem-teto que habitavam uma imensa área improdutiva há cerca de 8 anos. Devido à forma violenta e desumana com que a desocupação foi realizada, a ação repercutiu por todo o país, causando indignação. Talvez pior que a forma de execução tenha sido o desenrolar do processo judicial, marcado por obscuridades e falhas. Primeiramente, a juíza Márcia Loureiro "ressuscitou", por conta própria, uma liminar de reintegração de posse que havia sido solicitada pela massa falida da empresa Selecta e indeferida em 2005. Foi feito um agravo de instrumento contra a decisão da juíza, mas seu julgamento foi procrastinado. Além disso, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo pleiteou ingressar no processo como assistente litisconsorte dos ocupantes. Tal pedido foi indeferido, sob o argumento de que não seria de competência de tal órgão atuar em nome de uma coletividade em assuntos que envolvessem interesses particulares. 
O empenho demonstrado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em desocupar a área também é um fator extremamente suspeito. O desembargador Ivan Sartori levou à cabo a ação contrariando uma decisão da Justiça Federal, que havia entrado com uma medida cautelar e assinado um acordo, na presença de parlamentares, para suspender a reintegração de posse. Havia, ainda, em tramitação, um processo de regularização da área como núcleo habitacional, visto que já havia sido constituída uma cidade no local. Ignorando todos esses fatores, o desembargador ordenou o imediato cumprimento da ação de reintegração  num domingo de madrugada. Milhares de famílias foram arbitrariamente expulsas, agredidas, desabrigadas e tiveram seus lares demolidos. Após o massacre, algumas entidades enviaram uma reclamação disciplinar contra os juízes e desembargadores envolvidos no processo ao Conselho Nacional de Justiça, no entanto, nenhum deles foi punido. Alegaram, para sua defesa, que o problema social da moradia no Brasil não é competência do Judiciário, que deve restringir-se à aplicar a lei na resolução dos conflitos. 
Diante desse acontecimento, é possível questionar a teoria hegeliana de universalidade do Direito, que idealiza o Direito como o maior instrumento de realização da liberdade humana, capaz de superar as individualidades e assegurar garantias a toda a coletividade. O massacre do Pinheirinho demonstra que o Direito, inserido no capitalismo, serve, na verdade, para assegurar os interesses da classe dominante. Havia, no caso, dois direitos conflitantes, previstos na Constituição: o direito à propriedade e à moradia digna. Todas aquelas milhares de pessoas, como muitas outras no Brasil, eram privadas de seu direito à moradia, no entanto, sobressaiu-se o direito à propriedade de um megaespeculador financeiro, dono da empresa falida. Nossa Constituição prevê, também, o cumprimento da função social da terra, o que não ocorria antes dos sem-teto ocuparem aquela vasta área abandonada e improdutiva para estabelecerem suas moradias.  Na teoria, a lei estabelece a liberdade e a igualdade a todos os indivíduos; na prática, porém, ocorre de maneira diferente. 
O caso do Pinheirinho evidencia, numa perspectiva marxista, o Direito como um mecanismo de dominação político-social. Os trabalhadores foram expulsos de suas moradias, tratados como animais, tiveram sua dignidade humana violada, tudo sob o fundamento da legalidade. A "justiça" estava sendo feita: o Estado, por meio da lei, estava assegurando o direito de propriedade do empresário; portanto, pouco importava a condição dos "invasores". Nenhuma atitude foi tomada em relação às irregularidades processuais, à arbitrariedade, à ofensa aos direitos humanos; afinal, tratavam-se de ocupantes ilegais, pessoas destituídas de poder econômico e, consequentemente, de poder político, de voz, de importância. Em vista disso, é possível inferir que o Direito assegura a todos apenas a liberdade formal. Dadas as condições materiais desiguais na sociedade capitalista, a liberdade defendida por ele está sempre vinculada a uma classe: aquela que possui maior poder econômico. Visto que as relações econômicas determinam, em última instância, as relações políticas e sociais, o Direito, neste contexto, é um reflexo das condições materiais desiguais, instrumento de realização da liberdade burguesa, ou seja, da liberdade de mercado. A aplicação da lei nem sempre, ou quase nunca, é sinônimo de justiça.
Thainara Righeto - matutino

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