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segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O novo papel do Direito: de dominação a transformação social

Em abril de 2012, deferiu-se a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental sobre a interpretação da interrupção da gravidez de feto anencéfalo como conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, devendo ser considerada inconstitucional. Mais uma vez, o direito se apresenta como intermediador de problemas sociais além de sua área de atuação. Nesse caso, temos um confronto entre os interesses legítimos da mulher grávida, que busca preservar sua saúde, dignidade e liberdade principalmente; e os interesses da sociedade, que luta para proteger todos, inclusive aqueles que não nasceram e possuem baixas chances de sobrevivência. Tal conflito envolve a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais.

A expansão do direito nesse contexto, no qual o Judiciário invade o campo científico, permite a concretização de premissas abordadas por Bourdieu em A Força do Direito, como a atuação do tribunal em conflitos “inconciliáveis”, os efeitos da universalização e racionalização das normas jurídicas, a importância da manutenção da ordem simbólica e os espaços dos possíveis dentro do campo jurídico. Segundo Bourdieu, no tribunal deve sempre prevalecer a aplicação prática, livre e racional da norma universal e cientificamente fundamentada, permitindo os profissionais especializados tomar soluções imparciais. Dessa forma, espera-se que o direito seja capaz de propor as medidas ideais para os conflitos sociais. Nesse caso, cabe ao tribunal decidir quais direitos priorizar: os da mãe, submetida a transtornos físicos e mentais, ou os do feto.

Desde 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) traz para o campo jurídico a questão da antecipação do parto de anencéfalos, que deveria se tornar legalizada, e não enquadrada como aborto, condenado pelo Código Penal. Segundo a CNTS, a antecipação terapêutica do parto não implica em aborto porque ele envolve a vida extra-uterina em potencial e a rejeição da mãe ao feto. Tais condições não se enquadram na gestação de anencéfalos, uma vez que mais de 50% fetos morrem no período intrauterino, e quando não, em minutos após o parto.

Contudo, apesar da condenação pela prática de aborto, a comprovação cientifica de baixa expectativa de vida no caso de anencefalia permite ao tribunal decidir sobre a permissão ou não da antecipação do parto. Exemplifica-se assim a ideia de Bourdieu de que o direito não é independente das pressões sociais, ele sempre se adequa a elas. A manutenção da “ordem simbólica” implica na adaptação do direito e do campo jurídico ao novo estado das relações sociais para garantir a legitimação da forma estabelecida. A norma consolidada ao confrontar a vontade real (do povo), torna-se inadequada, devendo ser, portanto, atualizada.

O grande problema na decisão judicial é as divergências da sociedade quanto a questão da antecipação do parto do feto anencéfalo. Para muitos, o caso trata de aborto eugênico que busca estabelecer um controle de natalidade, ou então, que fere o direito da criança de nascer, que nem sequer tem a chance de lutar por sua sobrevivência. Para tantos outros, a comprovação científica, que não existia na época da publicação do Código Penal, serve de motivo suficiente para submeter a decisão de antecipar o parto a gestante, que se encontra em situação limítrofe de vulnerabilidade, sofrimento e medo. Decidir qual lado está certo implica na dominação simbólica de uma parte da sociedade. Para Bourdieu, o efeito da universalização, com a deslegalização ou não da antecipação do parto de anencéfalos, aumenta a autoridade social imposta pela “cultura legítima” e os seus detentores exercem para dar eficácia prática à coerção jurídica.

Quanto ao espaço dos possíveis, temos uma clara expansão da atuação do direito para fora do seu campo delimitado, invadindo o campo cientifico para ditar no final o que é vida propriamente dita e protegida pela lei. Apresentado pelo mesmo autor como espaço entre a razão e a moral, ele não permite que os magistrados deem o sentido que querem às normas sem levar em conta as pressões sociais. Assim, por mais que eles possuam um “ethos compartilhado” (mesmo valores e ideologias), não podem desconsiderar a opinião pública para impor sua decisão. Sendo assim, temos evidente mudança na postura do direito, que deixa cada vez mais de ser a “arma simbólica” de seus atores, tornando-se o grande agente das transformações sociais.

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