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quinta-feira, 5 de março de 2015

Lógica dos Campos

No Brasil, ao menos após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, algumas questões políticas têm sido levadas até o Judiciário, por meio das decisões do Controle de Constitucionalidade, e decididas em sua Casa Maior, o Superior Tribunal de Justiça. Observando os conceitos e pensamento constituídos na perspectiva de Bourdieu, apresentada por meio da leitura indicada, além de levar em consideração outros textos do pensador, já estudados pelo autor destas breves considerações, será feita a análise da questão da judicialização, da natureza dos Poderes instituídos no Estado Moderno e que repercutem na maior parte dos Estados contemporâneos, tomando como paradigma o julgado levado para a sala de aula, que diz respeito ao aborto de anencéfalo.
Na solidificação do Estado Moderno, a necessidade de controlar o poder político é, senão o fundamento da própria expressão da forma estatal, um dos motivos imprescindíveis para que se pense toda a manifestação que decorre desta institucionalização. O poder político, até então, era pouco ou nada democrático, de forma que estava distribuído desigualmente, se for possível considerar alguma distribuição, perpetuando relações desiguais entre os indivíduos que compunham as sociedades. Tanto a titularidade quanto a expressão do poder pertenciam a classes privilegiadas. Com o advento do Estado burguês, entretanto, pautado pela razão e burocracia, a titularidade do poder foi distribuída elegante e simbolicamente para toda a Nação que, incapaz de realizar o poder por si mesma, delegava a alguns representantes esta tarefa. Como se pode ver, faticamente, o poder não foi distribuído, e exercer alguma forma de poder político é, ainda, algo que é reservado para poucos. O que mudou, portanto, é como essa capacidade é adquirida, de forma que a fundamentação última para exercer um cargo político é o respaldo social que, na forma institucional brasileira, se dá por meio do voto. O cargo político, também, tornou-se impessoal e temporário, garantindo, em análise superficial, a renovação e o feedback institucional para que se comensurasse o capital político. O fundamento onde se baseia esta estrutura institucional e o meio por onde se garante a titularidade do poder político para o povo é a liberdade burguesa. Por meio deste preceito, falso ou verdadeiro, impregnado em todos os Ordenamentos Jurídicos do mundo Ocidental, a possibilidade de acesso ao cargo político é, por mais que se esqueçam, a titularidade por via normal do poder político, e a titularidade  por via anormal é representada pela possibilidade de revolução.
O mundo jurídico, por sua vez, constitui um campo de atuação distinto de todos os outros campos e característico apenas de si mesmo. A complexidade que recebe o Direito nas sociedades Ocidentais concebe, por meio da assimilação de métodos e linguagem de acesso próprios, um mercado que possibilita a manifestação de determinados atores, mercado que constitui capital e, aparentemente, um capital distribuído de maneira muito desigual. Este capital é reclamado por diversos atores do campo jurídico e, na perspectiva do estudo de Bourdieu, fica distribuído por uma lógica dicotômica em que de um lado estão os Doutrinadores, Professores de Direito e, de outro, os Magistrados. A lógica é espectral, ou seja, pode-se observar, mais ou menos, para qual dos dois acumuladores de capital jurídico tende a balança a tender, mas dificilmente, para não dizer que é impossível, estará concentrado absolutamente. Os fundamentos do campo jurídico, como estuda Bourdieu, estão pautados, por meio da linguagem técnica-burocratizada, sobre a necessidade de se alcançar uma decisão imparcial, o respeito às colocações de cada um dos agentes no processo e o respeito às decisões passadas. Estes fundamentos criam e são criados pelos limites do campo jurídico, assim "as divergências entre os "intérpretes autorizados" [do direito] são necessariamente limitadas e a coexistência de uma pluralidade de normas concorrentes está excluída por definição da ordem jurídica". No processo para alcançar este fim, o da inexistência da pluralidade de normas e de fontes do Direito, estruturas de uma hierarquia do Direito, constata o autor que há a apriorização, que se trata da neutralização e universalização da análise, produzindo um discurso jurídico impessoal.
No Estado brasileiro contemporâneo, a provocação do sistema Judiciário tem sido cada vez maior, de forma que as mais variadas matérias do cotidiano são decididas por meio de pareceres e decisões técnico-jurídicas, que sustentam-se, no cerne da população, sobre a reverência que se tem aos Doutores, aqueles que, assim como constata Bourdieu, concentram algum capital jurídico e ganham a possibilidade de participar deste universo de agentes limitados e de manifestações controladas e concentradas.
Não discorrerei sobre minha perspectiva em relação à tomada de decisões políticas que, como demonstrei recorrentemente em sala, está pautada sobre a natureza do processo decisório, crendo que a breve análise da legitimidade de cada uma das manifestações constitui o suficiente para que o leitor a compreenda. Desta forma, avanço para o caso do julgado que diz respeito ao aborto de anencéfalo sob esta perspectiva.
É fato que, por meio do Controle de Constitucionalidade, o Judiciário é provocado a decidir politicamente. Este processo consiste em uma das manifestações de invenção do campo jurídico e de seu ator principal que está presente no STF, o Magistrado. Esta invenção pode ser para ampliar, “extensio”, ou restringir, “restrictio”, determinado direito. Como observado por Bourdieu, a prática do Direito pode ser observada neste caso, pois uma disputa ou litígio de fato foi utilizada para provocar o campo jurídico, que trouxe a discussão e a argumentação para a estrutura especializada do Direito, imparcial e neutro, para que fosse feita uma manifestação pública acerca do conflito. Perfeitamente, uma decisão de cunho político foi legitimamente tomada pelo campo jurídico, de forma a corrigir o problema, suprimir o litígio. O respeito às decisões anteriores, como apontado por Bourdieu, é um dos fundamentos do campo do Direito e, assim, vinculam-se todos os litígios do Ordenamento à esta decisão. Casos únicos, com características próprias, utilizados como força vinculante. Ora, é necessário que seja considerado, também, o todo. De que forma é possível que, decidindo sobre o caso A, pode-se saber que a decisão seria tomada também para B? De que forma é garantido que a decisão não se vinculou a pressões externas ao campo jurídico? Como é possível que uma decisão vinculante, fonte de Direito, contrarie uma Lei, fonte maior do Direito no Ordenamento brasileiro?

Os litígios precisam ser resolvidos, mas é necessário que se considere que a forma como a decisão política tem sido tomada, sem provocar novamente o processo Legislativo, deixa vagos diversos questionamentos, causa insegurança e impossibilidade de ser, efetivamente, justo.  Me parece que a crença, ou a reverência prestada ao Judiciário, trata-se da própria incapacidade não apenas dos titulares do poder de materializá-lo, mas dos representantes que convencionou-se que deveriam cumprir este papel. Ao invés de repensar as estruturas, delega-se todo o controle a outro Poder institucional do Estado e nesta atitude, no mínimo, mantemos um Poder Legislativo que pode ou não participar do processo que lhe dá nome: legislar.

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