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sábado, 7 de março de 2015

A impossibilidade da racionalidade pura no Direito

O sociólogo francês Pierre Bourdieu, em sua obra “A força do Direito”, apresenta aos leitores a sociedade como uma lógica de campos, cada qual com seu habitus específico e marcado por uma luta simbólica que almeja a distinção. Dentre estes, encontra-se o campo jurídico, cuja luta simbólica caracteriza-se por ser uma concorrência pelo monopólio do direito de fazer o Direito. Nesse contexto, trata-se de um campo com uma lógica duplamente determinada: por um lado, pelas relações de forças específicas que orientam as lutas de concorrência, e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam o espaço dos possíveis e, consequentemente, as soluções jurídicas.
Diante de tais considerações, Bourdieu faz uma constatação de extrema atualidade: uma relação entre o caráter positivo da norma e a necessidade de atendimento às demandas sociais, e faz isso ao afirmar a autonomia relativa do Direito e do campo jurídico, isto é, trata-se de um campo que deve evitar o formalismo (entendimento do Direito como força autônoma diante das pressões sociais) e o instrumentalismo (ideia de Direito a serviço da classe dominante). Trata-se de constatação atual pois hoje, mais que nunca, a sociedade se levanta contra o Estado reivindicando suas demandas, e, nesse contexto, perderia sua legitimidade caso fizesse uso do argumento do Direito como um sistema rígido para não atendê-las. Assim, o Direito encontra nas forças externas o princípio de sua transformação, constituindo-se por uma dinâmica que considera a lógica positiva da ciência e, ao mesmo tempo, a lógica normativa da moral, mostrando que a independência do Direito em face das relações de força externas não passa de mera ilusão.
Pode-se utilizar, nesse caso, o exemplo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) levantada pela CNTS com a pretensão de reconhecimento da inconstitucionalidade da hipótese de criminalização do aborto de feto anencéfalos. Trata-se de uma nova demanda social, que surge mediante reflexão crescente da sociedade atual acerca das condições físicas e psicológicas da mulher que se encontram grávidas de fetos cuja perspectiva de vida extra-uterina é praticamente nula, mas que esbarra em determinação do Código Civil brasileiro que defende o direito do nascituro à vida e, portanto, proíbe o aborto. A decisão do STF a favor da descriminalização desse tipo de procedimento comprova a teoria de Bourdieu que afirma a grande influência dessas forças externas no processo de alteração do Direito. O autor atenta, porém, à transformação do campo jurídico no espaço dos possíveis, isto é, não se trata de um espaço de discussões ideológicas ou pessoais, mas sim uma interpretação e ampliação limitada dentro daquilo o que está definido.

Assim, a autorização para aquilo o que se chama de antecipação terapêutica de fetos anencefálicos  comprova a teoria do sociólogo que defendia a impossibilidade da racionalidade pura, que dava margem à invenção do magistrado, operador da historicização da norma, isto é, adaptando as fontes a novas circunstancias, descobrindo nelas possibilidades inéditas que, por sua vez, só frutificam se encontram respaldo, como houve no caso, nas estruturas já consolidadas pelo habitus.

Julia Bernardes- Direito Diurno

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