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domingo, 18 de março de 2012

Cartesiano, desde criança!


"O pai de Matilda tinha cabelos pretos que usava repartidos no meio e dos quais tinha muito orgulho.
- Cabelos bons e fortes significam que há um cérebro bom e forte por baixo - ele dizia.
- Como Shakespeare - Matilda comentou certa vez.
- Como quem?
- Shakespeare, papai.
- Ele era inteligente?
- Muito, pai.
- E ele tinha muito cabelo, não é?
- Ele era careca, pai."

                Matilda é a criança prodígio que protagoniza o romance infanto juvenil homônimo escrito pelo britânico Roald Dahl. Trata-se da filha mais nova de um casal repleto de vícios em questões morais, como vigarices financeiras, jogos de azar, dentre outras atitudes certamente reprováveis. Matilda é autodidata e absurdamente cedo aprende a ler; consome avidamente os livros da biblioteca de seu bairro. Como sua habilidade de leitura, também sua capacidade de discernimento do mundo à sua volta é precoce. Logo começa a repudiar o comportamento padrão que a cerca, tornando-se um indivíduo crítico em relação a sua família e escola - seu meio social. Sentindo-se no dever de militar contra os preconceitos, as ideologias vis e as opressões - físicas e psicológicas - Matilda dá início à trama que envolve, em suma, um indivíduo que, por se utilizar de um método racional, rompe com os grilhões do seu meio a fim de revolucionar a consciência dos que a cercam.
                Guardadas as devidas proporções, pode-se certamente afirmar que há um pouco de Descartes na trama de Matilda. Embora para esta a questão moral tenha uma relevância superior do que àquele, ambos parecem ser movidos por um mesmo combustível. Descartes viu-se num universo impregnado por mitos, dogmas e pseudociências. Não sentiu, nos bancos escolares, a solidez que um conteúdo científico transmite. Da mesma forma, Matilda também estava inserida em um contexto de repressão, ideologias infundadas e nos bancos escolares conhecia metodologias absurdas. A superioridade das instituições que cercavam tanto Matilda quanto Descartes era justificada por argumentos infundados, que tinham por objetivo apenas a manutenção do status vigente.
                Matilda rebelou-se. Enquanto seus pais ofereciam-lhe horas de contemplação à televisão como forma de satisfação cultural, a menina foi à biblioteca e desenvolveu, à luz de sua própria razão, seu senso crítico e seu conhecimento do mundo. Era o conhecimento revelado pela emissora que era substituído pela construção autodidata da criança. Descartes, por sua vez, teve audácia semelhante ao rejeitar as pseudociências de seu tempo, e trocou o culto às verdades insofismáveis pelo método científico racional. Matilda ousou questionar a autoridade da sua instituição de ensino, da mesma forma que Descartes rejeitou a ciência que os filósofos ancestrais lhe transmitiam através de seus instrutores.
                Descartes e Matilda são, pois, movidos pelo mesmo sentimento. Esse espírito da busca pela verdade científica e pelo conhecimento racional é, portanto, universal. É por esse motivo que a obra de Descartes faz-se válida por todos os séculos que atravessou: porque romper com dogmas e desvelá-los pela razão é uma atividade constante em todos os tempos. Dahl acaba buscando, com sua obra, despertar esse espírito crítico, latente no ser humano, logo que as crianças possam interessar-se pela leitura.
                A Astrologia, a Religião, dentre outras ciências creditadas na era de Descartes não morreram por completo. Exilaram-se em algum lugar a fim de distanciar-se das mentes que ganharam força suficiente para enfrentá-las. Da mesma forma, no romance de Dahl, Matilda, com a ajuda da habilidade telecinética, conseguiu manter distantes as pessoas que tentaram lhe impor uma ordem irracional, de forma a revolucionar para sempre a vida das pessoas que lhe rodeavam.


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